sábado, 7 de junho de 2008

A ÁRVORE


Dona Jane e seu Alfredo moravam há mais de trinta anos naquela casa, que ficava na parte baixa da rua e o muro gradeado, sempre pintado de branco, separando o pequeno jardim da calçada, chamava atenção pelos cuidados que os moradores tinham com sua limpeza, motivando “destemperos” de seu Alfredo com os meninos da rua, que insistiam em escalá-lo. Compraram o imóvel quando ainda estavam noivos e Alfredo, então gerente de uma fábrica de perfumes, saldou o pagamento parcelado em poucos meses. Ali nasceram Cláudio e Nancy, seus filhos, nessas alturas casados e tratando de suas vidas longe dali. Todos os vizinhos sabiam que exceto com a mulher, Alfredo era um sujeito de maus bofes, como se dizia então.

Muitos atribuíam tal mau humor às gafes de Jane. Se já não fosse agradável morar na casa de número vinte e quatro de uma rua onde a molecada não deixava de aproveitar qualquer oportunidade para fazer galhofas, principalmente sabendo que qualquer provocação era devolvida pelo velho senhor com os impropérios de sempre, dona Jane, simpática e desligada, volta-e-meia metia-se em alguma enrascada que dava assunto por semanas para as fofoqueiras de plantão. A última aconteceu numa festa na casa de Dona Laura.

Os senhores Pinto e Oliveira eram dois grandes amigos. Ambos portugueses aposentados e com mais de setenta anos, encontravam-se diariamente para caminhadas pelas ruas do bairro, conversando e dando boas gargalhadas de histórias que só eles sabiam. No dia da festa de Dona Laura, o senhor Pinto, adoentado, não compareceu. Jane, atenciosa como sempre, foi até o velho Oliveira, que conversava com um grupo de vizinhos e perguntou em voz alta:

- Seu Oliveira, cadê o seu Pinto?

O silêncio foi total. Sem graça, Oliveira respondeu:

- Ele está adoentado, Dona Jane.

- Quer dizer que seu Pinto está doente? Mas o quê que ele tem?

Nessas alturas, Alfredo pediu licença e puxou Jane pelo braço para fora do grupo, enquanto se ouviam os risos abafados dos vizinhos.

Tinham um cuidado muito grande com a casa, onde raramente recebiam visitas. Não se sabe bem o motivo, mas certa ocasião resolveram estender o jardim até a calçada. Contando com a omissão dos fiscais municipais que raramente apareciam naquela região e com a paciência dos vizinhos, Alfredo quebrou o passeio e ocupou cerca de um metro da larga passarela com um canteiro onde plantou flores e vegetações ornamentais. No princípio, surpreendentemente paciente, replantava as mudas surrupiadas, até o dia em que, furioso, arrancou-as e gramou a área, declarando que, assim, imitava o Grajaú, bairro onde as ruas com suas calçadas largas, são enfeitadas com áreas cobertas de grama, até os dias de hoje.

Numa ocasião, enquanto aparava o tal canteiro, percebeu em seu centro um arbusto, pouco mais que uma muda, cuidadosamente plantado. Estranhou o fato e logo foi informado que a tal arvorezinha era um eucalipto, planta exigente e que só crescia em locais com solos úmidos. Era de conhecimento de todos que aquela parte da rua recebia o fluxo das águas do lado alto e muitas casas, inclusive a de Alfredo, foram construídas bem acima do piso normal para evitar infiltrações. Assim, o local era o ideal para o crescimento de um eucalipto.

Ignorando opiniões que iam da possibilidade da árvore prejudicar a fiação elétrica aérea dos postes, até a falta de simetria com as antigas árvores plantadas espaçadamente sobre as calçadas, seu Alfredo exultava com o tamanho, cada vez maior, da sua “plantinha”. Com rapidez a pequena muda tornou-se a árvore esperada que ignorando a rede elétrica, passou por ela e seguiu seu rumo em direção ao céu. Segundo cálculos de pseudo-entendidos só iria parar de crescer ao atingir uns vinte metros, mas o eucalipto, com um tronco que mal dava para ser abraçado, foi a mais de trinta.

Somente aí passou a ser conhecido da fiscalização. Ali compareceram duas ou três vezes até que, finalmente, surgiu o caminhão e serras elétricas para derrubar a imponente árvore. A reação foi imediata. Seu Alfredo saiu de casa bufando, enquanto a rapaziada do bairro se postava ao redor do tronco, impedindo o trabalho dos operários.

Com a polícia vieram os repórteres e com as notícias dadas em diversas rádios, a ordem que sustava a derrubada, até que novos estudos fossem concluídos. E lá ficou o eucalipto, ponto de referência avistado em toda a região:

- Não conhece a rua? Sabe onde tem aquele eucalipto? É na segunda esquina depois dele...

Na Copa do Mundo, uma bandeira brasileira, com as laterais fixadas por arames, foi presa lá em cima, de onde saiu graças à incompetência de quem a prendeu. Acabou se soltando e indo parar, levada pelo vento, no telhado da casa do seu Antero, que esbravejou pelas telhas quebradas.

O perigo de cair sobre a rua quando de um vendaval, não aconteceu; quanto à possibilidade das raízes levantarem a calçada e muros próximos, jamais se percebeu qualquer rachadura que pudesse creditar ao crescimento das suas bases. Passou a ser um ponto turístico:

- Se a Zona Sul tem o Pão de Açúcar e o Corcovado, nós temos o eucalipto!!!

Parecia uma obra indestrutível. Chegou a enfrentar um carro desgovernado que desmanchou sua frente ao bater nele, obrigando a presença dos Bombeiros para tirarem o motorista preso nas ferragens. O eucalipto? Exceto por um pequeno lanho, “nem te ligo”.

Por diversas vezes a fiscalização tentou convencer aos moradores dos perigos de uma árvore daquela altura para a comunidade. Contando com o apoio de um vereador muito votado naqueles cantos, surgia sempre o veredito:

- A árvore fica!!!

Cinco anos se passaram até a própria natureza resolver o problema. Foi uma daquelas tempestades que pareciam acabar com o mundo. Chuva violenta, trovões. Já era noite quando o raio atingiu a soberba árvore, rachando-a ao meio.

No dia seguinte, a consternação geral com a chegada dos soldados do Corpo de Bombeiros, ajudados por escadas especiais, subiram até seu topo e iniciaram o corte em pedaços, transferidos através de um guindaste, para o caminhão da Prefeitura que chegou juntamente com os veículos dos militares. Em pouco tempo, apenas um toco mostrava onde antes estava plantado. Mesmo esse foi liberto das raízes mais profundas e mandado para junto dos outros pedaços, amontoados na caçamba do veículo.

Ali terminava mais uma história da velha rua. Nem as cicatrizes do solo ficaram. Seu Alfredo recebeu uma intimação e teve de reconstituir toda a área. Rapidamente não se falava mais no assunto, até que numa noite, um vizinho viu seu Alfredo ajoelhado na calçada, plantando alguma coisa entre as falhas do passeio. Chegando mais perto, ouviu-o conversar animadamente com a pequena muda:

- Fique tranqüilo, filhinho. Muito breve você estará do tamanho do seu irmão que se foi...

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