domingo, 15 de junho de 2008

O MENDIGO


Era alto e magro. Vestia um costume cujo paletó, bem cortado, evidenciava ter sido feito por mãos hábeis e caras. Não fosse a ausência da camisa e dos sapatos, poderia ser tomado como um homem de posses.

Com presumíveis trinta e cinco/quarenta anos, surgiu da noite para o dia naquela esquina, onde se postava de pé, sempre obedecendo a uma reta imaginária do tronco da árvore da qual ficava afastado cerca de dois metros. O olhar perdia-se num horizonte muito além das casas do outro lado da rua. Semblante tristonho, só esboçava um sorriso quando o proprietário do armazém, português baixinho e atarracado, passava por ele e brincava:

- Tens que arranjar uma hora para descansar, rapaz. Do jeito que te moves, vais morrer de cansaço...

Sua voz ninguém ouvia. Mesmo quando Dona Mariana, senhora bondosa, lhe dava o prato de comida diário (“coitado, tem idade para ser meu filho...”) fazia um arremedo de sorriso e olhava para ela agradecido.

Algumas velhinhas atravessavam a rua para não cruzarem com o mendigo, temerosas de um ataque que, segundo alguns debochados, enchiam seus sonhos com alegrias eróticas de há muito perdidas. As crianças, presença constante com bicicletas, patinetes e bolas, ignoravam o ser estático, que lhes retribuía a ausência de interesse.

À noite, desaparecia. Alguns diziam tê-lo visto entre as pedras do morro existente no final da rua, enquanto outros afirmavam que se abrigava num túnel, saída da estação da linha férrea, a cento e cinqüenta metros dali. O que se sabia, com certeza, era sua presença no lugar de sempre, todas as manhãs, enquanto os chefes de família saíam para o trabalho. Como não fazia mal a ninguém, o policial morador numa casa na parte alta da rua, foi convencido deixa-lo em paz.

- “O tempo tudo resolve”, dizia Dona Georgina . “Um dia, quem sabe, a gente vai poder fazer alguma coisa por ele”, concluía.

Meses se passaram e o homem já se confundia com a paisagem da rua. Só a sujeira dos seus trajes, os cabelos emaranhados e a barba grande, evidenciavam a longa permanência por ali. Certo dia, um grupo de animados ginasianos parou a certa distância dele, para conferir respostas dadas numa prova de História, da qual acabava de sair. O assunto girava em torno do Império Romano e para surpresa dos rapazes, ouviu-se uma voz clara, sonora e pausada, dissertando:

- Roma. Ao que dizem as lendas, fundada por Rômulo e Remo, irmãos gêmeos que quando crianças, teriam sido alimentados por uma loba (...) Os sete primeiros imperadores romanos foram importantes não só no desenvolvimento daquela cidade-estado, mas também na conscientização do povo para a unicidade exigida no estabelecimento do conceito, do sentimento de nação (...) A importância de Júlio Cezar no aumento da área sob jugo romano...

O mendigo caminhava de um lado para outro, como se desse uma aula para aqueles alunos surpresos. Todas as questões da prova foram respondidas sem que, em momento algum, olhasse na direção dos jovens. A partir daquele momento, ganhou um apelido: “Mestre”.

- Como vai Mestre, tudo bem?

Pergunta respondida sempre com o enigmático sorriso. A partir dali, tornou-se referência para estudantes com dúvidas. Respondia a todos os questionamentos sempre com o olhar dirigido para uma classe de aula inexistente. Vez por outra, com o bom humor inconseqüente dos rapazes, reagia com severidade:

- “Cara”, dizia um, “traduzi a frase Le lion c´est le roi des animaux, como: O leão de tanto hurrar desanimou”.

- Oh plebe ignara! O leão é o rei dos animais... Preste mais atenção ao que lê e fala!

A garotada se divertia a cada reação do mendigo. Até Dona Déia, católica fervorosa, foi ler em voz alta trechos da Bíblia, recebendo como resposta imediata, gentil e atenciosa, mas sem dispensar o olhar perdido, a seguinte recomendação:

- Não atentai somente ao que ledes! Procurai respostas também nos apócrifos, ignorados no Novo Testamento por não convirem aos que o organizaram.

Dona Déia foi procura saber o significado daquilo tudo e, assim, tomou conhecimento dos tais livros apócrifos.

Não havia mais dúvidas. O “Mestre” era dono de cultura invulgar e grande demais para alguém numa situação de miserabilidade daquelas. Havia de se fazer algo para identificá-lo, achar parentes ou responsáveis por ele. Dessa vez foram os moradores que procuraram por Wilson, o policial. Explicaram os últimos acontecimentos, aguçando sua curiosidade.

Alguns dia mais tarde, já quase noite, um belíssimo carro parou próximo do “Mestre” e dele saíram o motorista e um senhor de cabelos grisalhos, recebidos pelo costumeiro sorriso. Não reagiu e foi colocado gentilmente no banco traseiro do carrão, que imediatamente se deslocou no sentido sul da cidade. A explicação só foi trazida mais tarde, quando Wilson voltou do plantão na delegacia:

- O homem é um ricaço que ficou assim após perder a mulher e os filhos num acidente... Era um médico respeitadíssimo, apesar da pouca idade, e até livros já tinha escrito...

Ali acabava a curiosidade da vizinhança, enquanto aquele ser continuava escondido sob uma parede psíquica, protegendo-se das recordações que se tornaram a tragédia da sua vida.

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