Não existe povo com mais histórias para contar que o dos pescadores. Do tamanho do peixe até visões acontecidas em alto mar e sempre reafirmadas como verdadeiras, mesmo pelos que nunca viram nada. Uma vez, entretanto, fiquei muito impressionado com uma que me foi transmitida pelo Tonho, homem com mais de setenta anos e participante da antiga colônia de pesca lá do Posto Seis, em Copacabana. Eu o conheci acidentalmente ao ir até lá de manhãzinha, comprar um peixe fresco, após seu barco voltar do mar. Já não tinha quase nada para vender e acabou me recomendando ao dono de outra embarcação onde consegui garantir o almoço nosso daquele domingo.
Mais tarde, de volta à praia, avistei-o sentado com o olhar perdido no horizonte azul daquele dia ensolarado e puxei uma conversa boba que acabou me rendendo uma tarde inteira de papo interessantíssimo e onde ouvi a história que conto agora.
Muitos anos atrás, quando ainda era jovem, após voltar da pesca, Tonho observou um homem sentado lá para as bandas do Forte de Copacabana. Não era muito alto nem muito baixo; nem muito forte, nem muito fraco. Alguém comum, não fosse pela sunga que usava cujos reflexos faziam-na parecer feita com escamas de peixe. Embora, em princípio, o pescador tenha tentado se ocupar com outras coisas, seu olhar insistia em procurar pelo tal sujeito que permanecia ali, junto às pedra, com os pés banhados pelas águas e o olhar fixado no nada.
Como se levado por um imã, viu-se próximo do tal estranho e pode notar que sua sunga era, sim, idêntica às escamas, embora muito maiores que aquelas que se acostumara a ver. O ser tinha a pele muito branca para quem estava constantemente exposto ao sol do Rio e seus olhos detinham um azul fortíssimo. Os cabelos quase brancos, lisos, úmidos, alcançavam os ombros.
Sentou-se em outra pequena pedra ao seu lado e tentou puxar conversa. Foi prontamente respondido, mas assustou-se ao perceber que o sujeito não falava, embora escutasse sua voz em seu cérebro. Quis levantar, mas não conseguiu se mover. O outro percebeu seu pânico e o acalmou:
- Fiue tranqüilo que nada de mal vai acontecer com você. Só o chamei aqui porque pode me fazer um favor e, ao mesmo tempo, ajudar aos seus colegas de pesca.
E aí, assustado, ouviu a história que o Ser lhe contou. Ele era um habitante das águas e há séculos encarregado de zelar pelos mares que banham a cidade do Rio de Janeiro. Viu passarem por ali as caravelas de navegadores muito antes de Cabral chegar ao Brasil; divertia-se com a pesca dos primeiros habitantes daquela região; aborreceu-se com a mortandade que sujou seus mares com sangue francês e português durante as batalhas que expulsaram os primeiros e fundaram uma vila, ali pertinho, que daria origem à nossa cidade.
Nada, entretanto, mais preocupava ao estranho Ser, que as obras feitas na terra para tomar as praias nativas da região. O Aterro no Flamengo, onde em princípio as ondas batiam no costado do morro hoje chamado de Outeiro da Glória, o aumento da Praia de Copacabana, cujas modestas pistas de circulação tornaram-se uma avenida com largas calçadas, duas pistas de rolamento e uma extensão de areia sabe-se lá quantas vezes maior que à construída pela movimentação das marés, com a atenção de muitos anos de ir e vir das ondas.
Queria que Tonho fosse seu porta-voz e chegasse aos ouvidos das autoridades o aviso de que, em determinado momento, de uma forma ou de outra, o mar iria reclamar o espaço que lhe estava sendo tomado.
O pescador ficou atento a tudo, mas fez o estranho homem entender que ele jamais seria ouvido pelos que comandavam a cidade ou dariam atenção ao que quisesse falar. O estranho pareceu compreender sua explicação e após fixar seus severos ohos azuis no pescador, levantou-se, fez um gesto de agradecimento e caminhou em direção às águas, onde foi sendo lentamente sugado pela maré até desaparecer no oceano.
Passaram-se os anos entre o dia em que ouvi a tal história e a leitura dos jornais, onde numa página interna e sem maior destaque, havia a notícia de que os engenheiros responsáveis pela movimentação daquelas terras , tinha se apoiado em uma falsa premissa que não considerava o movimento das marés como fundamental no equilíbrio das faixas litorâneas e que tais aterros impediram a manutenção desse fenômeno, o que estava resultando, agora, num movimento único das ondas que já provocara, até aquela data, diminuições consideráveis nas areias depositadas principalmente em Copacabana, onde se estaria constatando uma retomada de quase dez centímetros por ano das areias ali colocadas por mãos humanas.
Voltei ao local onde conversara com o velho pescador e soube que ele já se fora desta vida há algum tempo. Decepcionado, iniciei o caminho para casa, quando meu olhar se dirigiu para as tais pedras próximas ao paredão do Forte, na esperança de ver por ali o tal homem sentado, olhando na direção do mar, com uma sunga prateada.
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