É uma chácara. Sobrevivente das dezenas existentes por ali quando a rua era tranqüila, calçada com paralelepípedos e que deu lugar a um alargamento das pistas e diminuição do tamanho dos passeios, cobrindo as velhas pedras com asfalto, tornando-a uma ligação importante no trânsito entre dois bairros.
Mas lá está a chácara, razoavelmente tratada, nos seus quinze metros de frente por cem de cumprimento, onde uma das árvores, certamente centenária, ultrapassa em altura os prédios, paredões sem janelas, que delimitam aquele oásis gramado. De seus moradores pouco sei, mas divirto-me assistindo aqueles que habitam o quintal, avistados do apartamento em que moro.
Um casal de Huskies Siberianos, já idoso porém imponente, e uma cadela da raça Labrador, Angel, com seus um ano e pouco de alegria e desconcentração. Entre seus feitos, assisti quando atrapalhou a cobertura da outra cadela, deixando o macho, Sultan, em estado de irritabilidade incontrolada. Todas as vezes que conseguia se ajeitar para início do coito, lá vinha a Angel correndo e se jogava contra eles, "desmontando" o velho cão.
De outra feita, os netos do morador, crianças visivelmente desacostumadas com grandes espaços livres, após circularem pelo terreno, resolveram organizar uma "pelada" no fundo do terreno, pelo tempo suficiente para que a jogadora não escalada se apossasse da bola e a levasse, com seus passos elásticos, para dentro do canil. Lá se foi o velho avô entrar onde as crianças não se atreviam, mas a graça da brincadeira logo terminou, não sei se pelos protestos de Angel trancada no canil ou dos moradores dos prédios próximos, pela algazarra de ganidos que fazia, querendo voltar a participar da partida.
Seu dono, como disse, já não é mais um jovem e o peso - exagerado - faz dele um senhor com movimentos vagarosos e limitados. Sei a hora em que chega à tarde e estaciona seu carro na varanda lateral. Os cães o recebem num uníssono latido de boas vindas. Alguns momentos depois, inicia-se aquilo que ele intitula de treinamento e eu de bagunça total.
Convoca primeiro Sultan e Réa (a fême Huskie) e dá ordens de comando como: "sentado"... "deitado"... "rolando", etc. Não tenho como, do ângulo de visão da varanda, assistir ao show. Somente ouço. Parecendo satisfeito com a obediência dos cães mais velhos, manda-os para o canil e chama por ela: - Angel! Os próprios huskies antevendo o que virá pela frente iniciam um coro de latidos que naquela raça, parece mais um lamento.
E começa o espetáculo: "Angel, venha cá... Eu estou chamando, Angel. VENHA CÁ!" Nessas alturas a cadela está sob minha visão, no fundo do terreno, cheirando as plantas, olhando e latindo para mim e não dando a mínima "bola" para o dono. Aí vem o novo e furioso grito: ANGEL! Ela em seus momentos rápidos e vigorosos logo some da minha frente.
"Vamos", começa o homem, "sentada"... Gritando: "Eu mandei sentar... isso... não, xixi não!..." Breve silêncio seguido de uma ordem: "Jacira, vem limpar a sujeira que a Angel fez na área de treinamento". O que assim chama, é algo em torno de vinte e cinco metros quadrados cimentados. E continua a luta:
"Angel, senta! EU MANDEI SENTAR", grita, "não... não... tira essas patas sujas da minha camisa!" Novo silêncio, até que se ouve algo como o estalar de um látego batido sobre o piso. "Agora você obedece, ou eu... larga o chicote, sua imbecil... LARGA"!
Nessas alturas os vizinhos que têm varandas viradas para a mesma área, já lotam seus espaços e as gargalhadas são inevitáveis. Finalmente vem a capitulação: "Chega, não tem jeito... pro canil, já!" e colérico: "Eu disse pro canil", enquanto Angel volta para o fundo do terreno e satisfeita com a presença de tanta gente nas janelas, late em nossa direção, como se fosse o cão, perdão, a cadela mais feroz do mundo, ratificando seu poder sobre aquele pequeno reino de mil e quinhentos metros quadrados onde, definitivamente, quem manda é ela.
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