Estendeu os braços, espreguiçando-se longamente. Pela janela, via o verde predominante no grande jardim que separava a casa da rua movimentada e cuja entrada era eternamente guardada por enormes seguranças, que lembravam aqueles “homens-armários” vistos nos filmes americanos.
O dia seria longo, sabia, mesmo assim seus gestos eram vagarosos, lembrando um gato ao acordar e cujos movimentos são quase em câmera lenta, até sentir a musculatura aquecida e pronta para saltos incríveis, que só eles sabem dar.
Após o banho, colocou o elegante terno e se encaminhou para a sala, no andar inferior, onde substancial desjejum o aguardava. Não gostava daquilo. Preferia o dos velhos tempos em que ele próprio ia até a geladeira, fazia o sanduíche que comia acompanhado de um suco qualquer. A riqueza trouxe-lhe mordomo, empregados, motoristas.
Por mais que o tempo passasse, não se sentia confortável com os “rapapés” dos que o cercavam. Isso tudo o sufocava e seria motivo de um longo papo com seu analista, logo que pudesse.
Na reunião daquela manhã, divertiu-se com o jovem garçom recém-admitido, visivelmente atrapalhado no uso da bandeja, xícaras e afins. Quase dera um banho no Diretor Administrativo que só não se enfureceu em razão do olhar complacente do seu superior, ele, é claro. Não iria tomar qualquer medida que prejudicasse o rapaz. Certo dia passara por situação semelhante, que só com a prática adquirida e o tempo, fizeram-no o exímio profissional de hoje.
E lá se foi a reunião, iniciou-se outra e depois telefonemas, exame de documentos, recepção a visitantes importantes... Não que estivesse exausto no fim do dia, mas saturado daquela vida que levava entre as paredes da fábrica e, até mesmo, da própria casa.
O carro negro, com vidros idem, esperava por ele, como sempre. Diferente dos outros dias parou e olhou ao seu redor. Lá na frente, quase no portão de saída da indústria, ia o garçom daquela manhã que, encerrado o expediente, certamente voltava para casa.
Para surpresa do motorista, dispensou-o assumindo o volante e, sem pressa, fez o mesmo trajeto do novo funcionário, até que esse se afastasse o suficiente da fábrica.
Evidente que o rapaz arregalou os olhos ao ver o chefão mandando que sentasse ao seu lado naquele carrão. Mesmo sem jeito, ocupou o lugar do carona e sorriu amarelo, quando lhe foi perguntado para onde ia. Morava longe, num subúrbio esquecido e se surpreendeu quando o chefe pediu que lhe ensinasse o caminho.
Viagem longa, trânsito complicado, o que permitiu relaxar e responder às perguntas do homem, que não parecia tão bravo como diziam por lá.
Acabaram parando em um botequim qualquer, onde a rapaziada ensaiava um daqueles pagodes usuais nos fins de tarde de sexta-feira. Beberam, cantaram, falaram de mulheres e de futebol. Discutiram aquela jogada decisiva do domingo passado e já eram altas as horas em que foi deixado na porta de casa, lamentando que os vizinhos não estivessem vendo sua chegada no Mercedes negro.
Contou a história para seus familiares. Sua mãe recomendou-lhe maiores cuidados com o chefe na segunda-feira; o irmão desconfiou que o cara fosse bicha e o pai, simplesmente, nada disse.
Chegou o dia da volta. Ressabiado e sem conversar com nenhum colega a respeito da aventura vivida, retornou às bandejas, cafeteiras, xícaras. O garçom da Diretoria, que faltara na sexta, voltara ao serviço e sua oportunidade de rever o chefe, remota. Melhor assim, pensou, o cara não me vendo, pode até esquecer daquela “zona” que armamos três dias atrás.
Pelo quê não esperava, era a convocação do Departamento de Recursos Humanos. Chegou lá
Não sabia, entretanto, do bem que fizera a um sujeito sério e caladão naquela noite. Escolhido ao acaso, conseguiu remetê-lo aos velhos tempos em que podia se dar ao direito de cantar sambinhas num bar, tomar “todas” e voltar para casa com o sol nascendo, meio de pilequinho, mas com a alma leve.
Não sabia o fim-de-semana alegre que proporcionara a uma família surpreendida pelas mudanças de temperamento de um homem cujas exigências do dia-a-dia tinham feito esquecer da existência da vida simples, agora lembrada, muito mais feliz que a dele.
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