sexta-feira, 6 de junho de 2008

O SAPATEIRO

Luigi estava cansado. Chegou por aqui aos seis anos de idade e nunca mais parou de trabalhar. No começo engraxava os sapatos dos fregueses da oficina pertencente ao tio, depois foi aprendendo outras funções, até ser considerado um sapateiro de primeira.
Ninguém colocava uma meia-sola como ele. Grossa nos sapatos das crianças e finas, delicadas, nos dos adultos. Era difícil sem um exame mais atencioso, saber a diferença entre um sapato novo e o que passava por suas mãos.
Vendo a habilidade do sobrinho, Vitório ensinava-lhe os meandros da profissão e Luigi chegou, até, a confeccionar sapatos sob medida para um cliente da zona sul e que, vez por outra, aparecia por lá com fotos de revistas estrangeiras, mostrando novas formas e estilos, fazendo o jovem se esmerar em copiá-las, tornando-as peças únicas pelas quais o tal freguês pagava muito bem.
Pena que a maior parte dos que procuravam pela oficina fosse gente do bairro, o que garantia, mesmo, o dinheirinho de sua sobrevivência e a da família. Morava com os tios, Vitório e Giovana, casal que fez dele o filho nunca conseguido. Os pais ficaram na saudosa Itália e jamais os viu novamente. O que ganhava não dava para ir visitá-los e eles, por sua vez, eram humildes lavradores no sul de seu país.
Assim o menino se fez homem, conheceu Claér, sobrinha de uma família vizinha e depois de longo namoro, casou-se. Por exigência de Vitório e Giovana, continuaram morando na mesma casa e a moça adaptou-se com facilidade ao gênio franco e expansivo daquela família de imigrantes.
Vieram os filhos, a quem o sapateiro não deixou que nada faltasse, principalmente cultura, a qual jamais tivera acesso. Pedro tornou-se doutor, médico, enquanto Ângela, arquiteta, casou cedo com um bom homem e logo o encheu de netos.
Vitório e Giovana se foram e após anos de muitas lutas e momentos felizes, Claér também. Os filhos e suas famílias não deixaram de dar atenção e carinho a Luigi, mas ele se recusava a abandonar a casa herdada do tio para morar com um deles:
- Quem casa quer casa longe da casa em que casa...
Brincava ele, justificando sua atitude que, no fundo da alma, tinha outros motivos. Entre aquelas velhas, mas bem cuidadas paredes, havia recordações e ecos de risos dos quais não podia se separar. Ali estavam sua vida e o carinho com que fora recebido há mais de setenta anos; o primeiro dia em que Claér pisou ali, nervosa e sob um olhar marotamente severo de Vitório, fingindo "examinar o produto" que o sobrinho insistia em chamar de noiva... O nascimento e casamento dos filhos, o orgulho em vê-los formados e seguindo suas vidas...
Luigi sorria sozinho e em momento algum sentiu solidão. Passara alguns apertos, sim, quando sua Itália aliou-se aos nazistas e os daqui, o olhavam com certa hostilidade. Nem por isso perdeu a freguesia, até porque, era a única oficina do gênero numa distância onde se somavam alguns bairros.
Manteve a loja enquanto pôde. Assim como Vitório fizera com ele, preparou Miltinho, moleque inteligente e educado, para sucedê-lo. Enquanto as pernas agüentaram, lá estava, toda manhã, levantando as portas metálicas. Tal ânimo, entretanto, foi-se indo aos poucos. Passou as chaves para o mulatinho sorridente, surpreendeu-se agradavelmente no dia em que viu a oficina sendo aumentada e, mais tarde, tornando-se uma loja revendedora de sapatos fabricados pelas indústrias que começavam a crescer no país.
As coisas mudavam depressa e ele não conseguia mais acompanhar a velocidade dos acontecimentos. Por uma questão de prudência, evitava sair à rua desacompanhado e o surgimento da televisão não justificava que andasse por aí. As notícias chegavam rapidamente.
Fora-se a agilidade, mas surgiu uma candura que encantava a todos. Embora Dina, a empregada e anjo de guarda contratada pela família, não lhe deixasse faltar nada, a vizinhança estava sempre por perto, com senhoras trazendo-lhe petiscos e os amigos "tirando uma casquinha" da ampla tela, indo assistir com ele os jogos transmitidos pela tevê.
Ao seu jeito, Luigi era feliz. Andava pouco, falava pouco. Emagreceu, mas os exames que o filho obrigou que fizesse, mostraram estar bem. Um colega de Pedro chegou a comentar:
- Seu pai está com a saúde melhor que a nossa...
Mas Luigi cada vez mais se fechava no seu mundo de alegres recordações que lhe faziam tão bem. E foi assim que numa noite acordo e divisou, num canto do quarto, seus tios Vitório e Giovana sorrindo para ele. Repentinamente, de uma luz, surgiu Claér, também sorridente estendendo-lhe a mão.
A felicidade era enorme. Com a agilidade que perdera no tempo, levantou-se, segurou a mão da amada e seguiu-lhe os passos na direção daquela luz maravilhosa.
Assim se foi Luigi ao encontro de sua nova vida.

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