Os fatos narrados a seguir são verídicos e acontecidos lá pelos idos dos anos sessenta e poucos do século passado, afinal nem tão longínquos assim...
A rua era uma das muitas que se encontravam nos subúrbios daquele tempo com antigas e bem conservadas casas, calçadas largas, arborizadas e pistas de rolamento revestidas com paralelepípedos, palavra que infernizava o vocabulário do jovem Kiko, gaguinho que por lá morava.
Aproveitando que tinha uma área plana e reta, era o paraíso da rapaziada que no fim de tarde, resolvia jogar uma “pelada”. Carros por ali, só os dos moradores ou os da chamada “Rádio Patrulha”, veículos da Polícia Militar, pintados de preto e branco, e que na época atendiam prontamente aos chamados dos moradores da região, mesmo que fosse somente para acabar com o futebol de rua da garotada.
Os jovens logo descobriram que se retirassem dois ou três dos paralelepípedos de cada lado, teriam como encaixar ali as traves mandadas fazer “sob medida” e fruto de uma vaquinha entre eles e diferencial maior dos “campos” de outras ruas, cujos gols eram apenas marcados por um monte de pedras ou, mesmo, de camisas dos atletas.
O maior problema é que à direita da intermediária do time que jogasse na direção de quem se dirigisse para o fim da rua, estava a casa do seu António - com acento agudo, sim senhor - rico comerciante aposentado (tinha até carro com chofer uniformizado!) e cuja residência se destacava das demais, por sobre um porão habitável, fazendo-a bem mais alta e cujas varandas laterais tinham as paredes cobertas com azulejos portugueses e janelas portando vitrais coloridos.
Bola vai, bola vem e lá ia ela por sobre os muros da tal casa. Todos já sabiam da aversão do português pelo futebol e, assim, quando a pelota era devolvida, vinha rasgada pelo canivete do velho ricaço. Os jovens recolhiam o “balão” murcho e saíam discutindo entre eles, achando culpados pelo mau chute. Nada de palavrões contra o proprietário assassino de bolas ou pedradas nos ricos vitrais. Velhos e bons tempos...
O sossego da rua só era interrompido no Carnaval pelo “bloco de sujos” organizado pelos mesmos rapazes que vestindo roupas de irmãs, mães e afins, passavam dançando e cantando as marchinhas de sucesso, ao som de um bumbo, tamborins, pandeiros e muita animação. Era a única época em que os moradores se dignavam a vir para as calçadas ou janelas, jogando confete e serpentinas sobre os poucos, mas animados foliões.
À noite, antes de rumarem para os festejos do clube do bairro, iam para a Praça Tiradentes, assistir a entrada dos bailes, principalmente o do Teatro João Caetano, responsável pelas fotos picantes, publicadas na Quarta-Feira de Cinzas pelas revistas da moda. E foi ali que se deu o fato que iria mudar a história daquela rua suburbana.
Eis que Zé Carlos, um dos integrantes da turma, chamou a atenção dos demais para uma figura que entrava no Teatro abraçado a uma maravilhosa mulata: Seu António!!!
Todo mundo sabia que a família do português, nessa época do ano se transferia para Petrópolis, onde tinha um sítio.
Alguma coisa teria de ser feita e com urgência!!! Mais uma vez o grupo separou apenas o dinheiro para a condução da volta e, assim, conseguiu juntar um valor que corresponderia a três entradas para o tal baile. Zé Carlos, Waldemar e Cláudio, os mais “espadaúdos”, foram destacados para a missão e logo adentravam no animado salão, onde localizaram numa mesa de pista, seu António com a enorme mulata dançando em seu colo.
- Oi seu António... Divertindo-se, hein?
- Feliz carnaval pro senhor!
- Eu não sabia que o senhor gostava de carnaval!
Enquanto o português tentava sair debaixo da exuberante mulata, os três se escafederam na multidão de foliões e logo encontravam com os demais do lado de fora. Voltaram para o bairro às gargalhadas e nos dias que se sucederam, o plano continuou sendo desenvolvido. Por mais que o velho António andasse para cima e para baixo, não conseguia encontrar os três “mandriões”, não se arriscando a perguntar por eles para os demais rapazes que cruzavam seu caminho.
Para Dona Francisca, sua mulher, que estranhava a nova mania do marido, explicava:
- Andar faz bem, minha Senhora. Principalmente na minha idade... Exercita os músculos...
Uma semana mais tarde, lá estavam as traves colocadas nos vãos dos paralelepípedos e como se previa, num chute mais arrojado, passou sobre os muros da famosa casa. Coube a Waldemar ir bater palmas e pedir a devolução da bola. Para surpresa de todos, o próprio António desceu os cinco degraus que separavam a varanda do portão de entrada. Devolveu a bola e, entre dentes, disse:
- Vê lá, ó gajo, se vão começar a jogar esse negócio aqui pra dentro toda hora...
Evidente que Dona Francisca mais uma vez estranhou, mas seu António retrucou com a maior seriedade:
- Sabe, Senhora, cheguei à conclusão que é melhor gastarem as energias jogando um futebolzinho inocente do que ficarem por aí fazendo tolices...
E assim acabou o maior problema dos “atletas” daquela tranqüila rua do subúrbio carioca.
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