quarta-feira, 11 de junho de 2008

CALÇADA


Até hoje não sei se era apelido ou sobrenome, mas Calçada encaixava-se como uma luva naquele crioulo alto, magro e falante, que zumbia em redor das mesas que ocupávamos na boemia da Tijuca, Rio Comprido, Estácio e afins.
Nunca soube dele exercendo qualquer atividade que lhe permitisse, sequer, pagar uma dose de qualquer coisa nos bares que freqüentava. Sempre adotado por um grupo, usufruía dos comes e bebes e, via-de-regra, participava dos debates fossem quais fossem os assuntos em pauta. Quando explodiam as gargalhadas, todos os demais procuravam saber qual era a mais nova criação lingüística do negão que, não conseguindo acompanhar a erudição dos eventuais companheiros, inventava termos ou os utilizava de outras maneiras, as mais estapafúrdias possíveis.

Há provas de que num debate em julgamento no Tribunal do Júri, ter um dos oriundos daqueles tempos usado uma de suas criações, inteiramente absorvida pela Promotoria e Magistrado:
- Ora, V.Excia, está usando de uma "prosopopéia manuelina".
Direitos autorais reconhecidos para o Calçada, que se tornara "imberbe", ao declarar que a partir daquela data, não beberia mais nada, promessa que não resistiu mais que um quarto de hora.
Mas o desajuizado tinha um anjo de guarda sempre de plantão. Dona Manuelina lavava roupa para as famílias da região e ainda arranjava tempo para fazer salgadinhos vendidos aos bares que freqüentávamos. Era o único pastel de camarão de bar, onde se identificava o "dito cujo" em seu interior.
Pagava as dívidas do amante e tornou-se figura conhecidíssima na Delegacia da Praça da Bandeira, onde se esgoelava num choro convulso, até que o "Seu" Delegado liberasse o Calçada, detido para averiguações que nunca davam em nada. Não era bonita, bem mais velha que o malandro e exercia sobre ele uma vigilância impressionante. Deixava que bebesse, cantasse seus sambinhas pornográficos e, até, que fosse preso por qualquer desconfiança levantada por algum policial novo na área, mas mulher era só ela e "estamos conversados". Tivesse algum rabo de saia na mesa eventualmente freqüentada pelo crioulo e, todos já sabiam, era questão de tempo para Dona Manuelina aparecer e rodar a baiana, como se dizia naqueles idos de 60.
Eis que anos depois, encontro o Calçada ocupando, surpreendentemente, o banco do trocador de um ônibus da Zona Sul. Reconheceu-me e fez uma festa tão grande que me deixou sem jeito sob os olhares dos demais passageiros. A pergunta tinha de ser feita:
- E Dona Manuelina, como vai?
Houve um hiato na conversa e enquanto arrumava algumas notas do seu caixa, até responder:
- "Larguei-la".
- Como largou... Era a mulher da sua vida, cara! Será possível que você não reconhece tudo o que ela fez para protegê-lo durante um bom pedaço de tempo... Protestei revoltado.
- Pois é. Continuou ele com os olhos voltados para as notas em sua mão. Caí na besteira de arranjar este emprego e ela se tornou um inferno. Examinava minhas roupas, procurava bilhetinhos nos bolsos e finalmente, um dia, peguei-a cheirando minhas cuecas... Mulher quando cheira cueca do marido ou tá a fim de levar uns bofetões ou de matar ele... Antes que acontecesse alguma dessas coisas, larguei-la.
Não pude deixar de dar certa razão ao Calçada.

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