segunda-feira, 23 de junho de 2008

UMA HISTÓRIA ANTIGA


Nunca foi um homem ambicioso. Para falar a verdade, afora os sonhos naturais da infância, jamais se preocupou com o que seria no futuro. Engenheiro, Advogado, Médico, Professor... O pai fora um honesto trabalhador da indústria privada e que respirou aliviado, certamente, quando ele resolveu parar com os estudos. Não que o velho tivesse dito algo, mas ter um a menos para alimentar certamente melhorou seu orçamento familiar. Leitor compulsivo, escrevia bem malgrado a instrução limitada e acabou conseguindo um bom emprego, que dava para viver sem maiores problemas. Quase vinte anos mais tarde, incentivado por amigos, fez o supletivo e de posse do certificado de conclusão do ensino médio, resolveu tentar uma faculdade qualquer. Direito. Era a mais próxima da sua casa e foi para lá que se dirigiu. Até que foi aprovado com certa distinção para quem não se preparou de forma adequada - dinheiro para cursinhos, nem pensar - e, rapidamente, começou a ascender profissionalmente. Chefe de Setor, de Departamento e, finalmente ao receber o diploma de "doutor", Gerente.


Casou-se três vezes, o que complicou um pouco as finanças, já que em todos teve filhos e os mantinha condignamente. Conheci-o quando, juntos, freqüentamos os bancos da faculdade, e nos tornamos amigos, coisa rara para ele que os contava nos dedos. A partir daí vi-me inserido em algumas de suas histórias de vida, nem sempre tão agradáveis de saber. De qualquer forma, fiquei conhecendo seus (dois) amigos, mulher e filhos.


Foi com surpresa que recebi um telefonema informando que se suicidara. Os três amigos se encontraram no IML e receberam juntos o bilhete que encontraram em seu bolso. Não era um recado para os que ficaram, mas somente um pequeno poema que, para nós, foi muito mais que a justificativa para seu ato desesperado:

"Nada que eu fiz deixou saudades,

nada que plantei frutificou

nada que eu fui virou história,

nada que amei também me amou.

Insólito pela própria natureza,

verdadeiro intróito à incerteza,

no livro da vida sou um nada.

Passei por ela com a impressão

de ter sido um equívoco

e minha missão,

suspensa antes de ser iniciada."



Não mostramos o papel com a escrita de quem certamente estava sobre grande emoção, para a mulher e os filhos. De comum acordo, fiquei de posse daquele tosco poema por muitos anos e só hoje, ao tentar organizar meus documentos, reclamação eterna de minha mulher, reencontrei o papel dobrado em quatro, num envelope cuja palavra "Diversos" constava do lado de fora. Tive vontade de transferi-lo à família ou, quem sabe, para mandar gravá-lo em sua lápide, mas, pensando melhor, certamente seria reviver emoções já acomodadas em suas mentes. Mudei o papel para uma pasta com o título de "Documentos Importantes". Talvez última homenagem ao velho companheiro.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

HERÓI SEM QUERER

Eram mil os contatos que tinha mundo afora, mas naquele momento necessitava, apenas, de um número telefônico que insistia em não completar a ligação.

A mulher contorcia-se em espasmos e gritava de dor. O parto estava em franco andamento e só ele poderia ajudá-la. Nem em filmes prestava atenção a essas histórias e, exceto pela água quente e pano limpo, cuja necessidade ecoava em sua mente, mas que jamais saberia onde e como usar, ajoelhou-se na frente da mulher que, deitada no chão da tapera onde morava no meio daquele matagal, postou-se numa posição que, em outro momento e situação, teria lhe dado um enorme prazer. Pediu a Deus para ajudá-lo.

Não queria, mas só pensava no por que parara o carro atendendo ao aceno da menina que agora olhava assustada para a mãe deitada e para ele, como se perguntasse o que estava acontecendo ali.

Em poucos minutos rompia a cabeça cabeluda de uma criaturinha morena e que logo foi totalmente expulsa do corpo da mãe e não se fazendo de rogada, explodiu num choro que parecia informar estar dispensando os tapas usuais na ocasião.

A própria mãe instruiu quanto ao cordão umbilical e pronto, ali estava uma outra menininha que, minutos mais tarde, sugava o seio da jovem senhora.

Só aí o telefone conseguiu funcionar e em quinze minutos os homens da ambulância do Corpo de Bombeiros chegavam até ele. Foi cumprimentado pelo médico da equipe e elogiado por ter se portado com a frieza que só Deus sabe como manteve.

Saiu dali e rumou direto para casa. Deixou o carro mal estacionado e subiu os cinco lances pela escada, dispensando o elevador, abriu a porta e foi recebido pela mulher assustada, olhando para ele. Não agüentando o nervosismo, falou com um sorriso forçado:

- Não imagina o que acabei de fazer...

Ela, com uma das mãos sobre o peito e a outra tapando a boca, respondeu com a voz tremida:

- Esse sangue na sua roupa... Oswaldo, pensei que não teria coragem... Você matou o gato da vizinha!

domingo, 15 de junho de 2008

O MENDIGO


Era alto e magro. Vestia um costume cujo paletó, bem cortado, evidenciava ter sido feito por mãos hábeis e caras. Não fosse a ausência da camisa e dos sapatos, poderia ser tomado como um homem de posses.

Com presumíveis trinta e cinco/quarenta anos, surgiu da noite para o dia naquela esquina, onde se postava de pé, sempre obedecendo a uma reta imaginária do tronco da árvore da qual ficava afastado cerca de dois metros. O olhar perdia-se num horizonte muito além das casas do outro lado da rua. Semblante tristonho, só esboçava um sorriso quando o proprietário do armazém, português baixinho e atarracado, passava por ele e brincava:

- Tens que arranjar uma hora para descansar, rapaz. Do jeito que te moves, vais morrer de cansaço...

Sua voz ninguém ouvia. Mesmo quando Dona Mariana, senhora bondosa, lhe dava o prato de comida diário (“coitado, tem idade para ser meu filho...”) fazia um arremedo de sorriso e olhava para ela agradecido.

Algumas velhinhas atravessavam a rua para não cruzarem com o mendigo, temerosas de um ataque que, segundo alguns debochados, enchiam seus sonhos com alegrias eróticas de há muito perdidas. As crianças, presença constante com bicicletas, patinetes e bolas, ignoravam o ser estático, que lhes retribuía a ausência de interesse.

À noite, desaparecia. Alguns diziam tê-lo visto entre as pedras do morro existente no final da rua, enquanto outros afirmavam que se abrigava num túnel, saída da estação da linha férrea, a cento e cinqüenta metros dali. O que se sabia, com certeza, era sua presença no lugar de sempre, todas as manhãs, enquanto os chefes de família saíam para o trabalho. Como não fazia mal a ninguém, o policial morador numa casa na parte alta da rua, foi convencido deixa-lo em paz.

- “O tempo tudo resolve”, dizia Dona Georgina . “Um dia, quem sabe, a gente vai poder fazer alguma coisa por ele”, concluía.

Meses se passaram e o homem já se confundia com a paisagem da rua. Só a sujeira dos seus trajes, os cabelos emaranhados e a barba grande, evidenciavam a longa permanência por ali. Certo dia, um grupo de animados ginasianos parou a certa distância dele, para conferir respostas dadas numa prova de História, da qual acabava de sair. O assunto girava em torno do Império Romano e para surpresa dos rapazes, ouviu-se uma voz clara, sonora e pausada, dissertando:

- Roma. Ao que dizem as lendas, fundada por Rômulo e Remo, irmãos gêmeos que quando crianças, teriam sido alimentados por uma loba (...) Os sete primeiros imperadores romanos foram importantes não só no desenvolvimento daquela cidade-estado, mas também na conscientização do povo para a unicidade exigida no estabelecimento do conceito, do sentimento de nação (...) A importância de Júlio Cezar no aumento da área sob jugo romano...

O mendigo caminhava de um lado para outro, como se desse uma aula para aqueles alunos surpresos. Todas as questões da prova foram respondidas sem que, em momento algum, olhasse na direção dos jovens. A partir daquele momento, ganhou um apelido: “Mestre”.

- Como vai Mestre, tudo bem?

Pergunta respondida sempre com o enigmático sorriso. A partir dali, tornou-se referência para estudantes com dúvidas. Respondia a todos os questionamentos sempre com o olhar dirigido para uma classe de aula inexistente. Vez por outra, com o bom humor inconseqüente dos rapazes, reagia com severidade:

- “Cara”, dizia um, “traduzi a frase Le lion c´est le roi des animaux, como: O leão de tanto hurrar desanimou”.

- Oh plebe ignara! O leão é o rei dos animais... Preste mais atenção ao que lê e fala!

A garotada se divertia a cada reação do mendigo. Até Dona Déia, católica fervorosa, foi ler em voz alta trechos da Bíblia, recebendo como resposta imediata, gentil e atenciosa, mas sem dispensar o olhar perdido, a seguinte recomendação:

- Não atentai somente ao que ledes! Procurai respostas também nos apócrifos, ignorados no Novo Testamento por não convirem aos que o organizaram.

Dona Déia foi procura saber o significado daquilo tudo e, assim, tomou conhecimento dos tais livros apócrifos.

Não havia mais dúvidas. O “Mestre” era dono de cultura invulgar e grande demais para alguém numa situação de miserabilidade daquelas. Havia de se fazer algo para identificá-lo, achar parentes ou responsáveis por ele. Dessa vez foram os moradores que procuraram por Wilson, o policial. Explicaram os últimos acontecimentos, aguçando sua curiosidade.

Alguns dia mais tarde, já quase noite, um belíssimo carro parou próximo do “Mestre” e dele saíram o motorista e um senhor de cabelos grisalhos, recebidos pelo costumeiro sorriso. Não reagiu e foi colocado gentilmente no banco traseiro do carrão, que imediatamente se deslocou no sentido sul da cidade. A explicação só foi trazida mais tarde, quando Wilson voltou do plantão na delegacia:

- O homem é um ricaço que ficou assim após perder a mulher e os filhos num acidente... Era um médico respeitadíssimo, apesar da pouca idade, e até livros já tinha escrito...

Ali acabava a curiosidade da vizinhança, enquanto aquele ser continuava escondido sob uma parede psíquica, protegendo-se das recordações que se tornaram a tragédia da sua vida.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

OS QUATRO AMIGOS

Eram quatro amigos. Desde os tempos de colégio primário. Foram crescendo juntos e, jovens, freqüentaram o mesmo clube onde além dos esportes usuais, dançavam nos bailes dos fins de semana.

Namorando, armavam programas em que pudessem participar juntos e assim foram até o vestibular, onde um cursou Engenharia, outro Administração, o terceiro Economia e, o último, Direito. Só aí seguiram caminhos diferentes e por mais que tenham tentado, os compromissos naturais foram afastando os quatro.

O que cursou Engenharia, depois de formado conseguiu uma bolsa e foi fazer doutorado na Alemanha e por lá ficou; o economista passou num concurso público e se transferiu para Brasília; o administrador após belo MBA, assumiu funções de destaque numa famosa indústria, enquanto o advogado nunca exerceu a profissão, já que ia muito bem, obrigado, na empresa de bebidas, seu primeiro e único emprego na vida.

Todos casaram, o advogado duas vezes, e a vida continuou até saberem da morte do engenheiro, cujo corpo retornava para o Rio, onde seria enterrado. Foi a primeira oportunidade de um encontro efetivo. Nenhum deles foi ao velório acompanhado de suas mulheres, o que facilitou a “esticada” até a zona sul, onde voltaram ao mesmo bar de tantos anos atrás. Nem a morte do amigo conseguiu conter a alegria daquele momento. Um primeiro chope e a mesma discussão sobre o sabor da pizza a ser pedida que, afinal, vinha sempre dividida em quatro sabores. Mesmo não gostando da Marguerita, lá estava o pedaço predileto do amigo que se fora.

Cada um contou sua história, os filhos nascidos, o sucesso em suas atividades. Menos o advogado, não satisfeito profissionalmente, não feliz nos dois casamentos e com uma lista de problemas com os filhos, que poderiam encher mil guardanapos do bar, se ali resolvesse escrevê-los.

Nem por isso ficaram menos felizes. A tarde já caía quando num pileque daqueles, onde – sempre – o economista tinha que ser amparado, passaram por uma casa lotérica e resolveram participar do concurso acumulado em muitos milhões e, apenas pela farra, jogaram todos os mesmos números.

No dia seguinte a surpresa do prêmio ganho. Foram juntos resgatar a fortuna e, de comum acordo e devidamente orientados pelo economista, resolveram fazer os mesmos investimentos e só tirarem o suficiente para uma vida mais confortável, coisa que variava sob a visão e necessidades de cada um.

O advogado comprou o apartamento dos sonhos, de frente para o mar do Leblon; o administrador investiu nas indústrias das quais, nessas alturas, era sócio e o economista foi fazer uma longa viagem pelo mundo.

Mais tempo se passou e foi a vez do administrador se ir. Novo encontro, novo pileque e a dificuldade do advogado em “transportar” sozinho o economista, nessas alturas com muitos quilos a mais e que o fizeram ser o próximo a ir embora. O sobrevivente da turma depois do enterro, não deixou de ir tomar um chope e comer a pizza, mas tudo ficara sem graça. Nem o bom dinheiro que não faltava mais, nem os problemas familiares que se amenizaram, faziam-no mais feliz. Morreu cinco anos depois.

Num velório pouco concorrido, a viúva foi abordada por uma parenta que se dizia vidente e perguntava a respeito de quem seriam os “três espíritos” junto ao caixão e que vez por outra davam uma olhada no morto e conversando entre eles, pareciam estar rindo.

A amizade continuava...

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O DIRETOR

Estendeu os braços, espreguiçando-se longamente. Pela janela, via o verde predominante no grande jardim que separava a casa da rua movimentada e cuja entrada era eternamente guardada por enormes seguranças, que lembravam aqueles “homens-armários” vistos nos filmes americanos.

O dia seria longo, sabia, mesmo assim seus gestos eram vagarosos, lembrando um gato ao acordar e cujos movimentos são quase em câmera lenta, até sentir a musculatura aquecida e pronta para saltos incríveis, que só eles sabem dar.

Após o banho, colocou o elegante terno e se encaminhou para a sala, no andar inferior, onde substancial desjejum o aguardava. Não gostava daquilo. Preferia o dos velhos tempos em que ele próprio ia até a geladeira, fazia o sanduíche que comia acompanhado de um suco qualquer. A riqueza trouxe-lhe mordomo, empregados, motoristas.

Por mais que o tempo passasse, não se sentia confortável com os “rapapés” dos que o cercavam. Isso tudo o sufocava e seria motivo de um longo papo com seu analista, logo que pudesse.

Na reunião daquela manhã, divertiu-se com o jovem garçom recém-admitido, visivelmente atrapalhado no uso da bandeja, xícaras e afins. Quase dera um banho no Diretor Administrativo que só não se enfureceu em razão do olhar complacente do seu superior, ele, é claro. Não iria tomar qualquer medida que prejudicasse o rapaz. Certo dia passara por situação semelhante, que só com a prática adquirida e o tempo, fizeram-no o exímio profissional de hoje.

E lá se foi a reunião, iniciou-se outra e depois telefonemas, exame de documentos, recepção a visitantes importantes... Não que estivesse exausto no fim do dia, mas saturado daquela vida que levava entre as paredes da fábrica e, até mesmo, da própria casa.

O carro negro, com vidros idem, esperava por ele, como sempre. Diferente dos outros dias parou e olhou ao seu redor. Lá na frente, quase no portão de saída da indústria, ia o garçom daquela manhã que, encerrado o expediente, certamente voltava para casa.

Para surpresa do motorista, dispensou-o assumindo o volante e, sem pressa, fez o mesmo trajeto do novo funcionário, até que esse se afastasse o suficiente da fábrica.

Evidente que o rapaz arregalou os olhos ao ver o chefão mandando que sentasse ao seu lado naquele carrão. Mesmo sem jeito, ocupou o lugar do carona e sorriu amarelo, quando lhe foi perguntado para onde ia. Morava longe, num subúrbio esquecido e se surpreendeu quando o chefe pediu que lhe ensinasse o caminho.

Viagem longa, trânsito complicado, o que permitiu relaxar e responder às perguntas do homem, que não parecia tão bravo como diziam por lá.

Acabaram parando em um botequim qualquer, onde a rapaziada ensaiava um daqueles pagodes usuais nos fins de tarde de sexta-feira. Beberam, cantaram, falaram de mulheres e de futebol. Discutiram aquela jogada decisiva do domingo passado e já eram altas as horas em que foi deixado na porta de casa, lamentando que os vizinhos não estivessem vendo sua chegada no Mercedes negro.

Contou a história para seus familiares. Sua mãe recomendou-lhe maiores cuidados com o chefe na segunda-feira; o irmão desconfiou que o cara fosse bicha e o pai, simplesmente, nada disse.

Chegou o dia da volta. Ressabiado e sem conversar com nenhum colega a respeito da aventura vivida, retornou às bandejas, cafeteiras, xícaras. O garçom da Diretoria, que faltara na sexta, voltara ao serviço e sua oportunidade de rever o chefe, remota. Melhor assim, pensou, o cara não me vendo, pode até esquecer daquela “zona” que armamos três dias atrás.

Pelo quê não esperava, era a convocação do Departamento de Recursos Humanos. Chegou lá em pânico. Tudo indicava que seria demitido. Ao contrário, foi recebido pela Gerente que o informou das ordens da Diretoria sobre encaminhá-lo para treinamentos que lhe permitissem acessar a posições de mais destaque num futuro próximo. Tivera a oportunidade que sonhara de largar o uniforme de garçom e passar a ser um funcionário como os outros. O quê fazer? Procurar o cara e agradecer ou “ficar na dele” fingindo que não existia? Escolheu a segunda opção e tocou a vida em frente.

Não sabia, entretanto, do bem que fizera a um sujeito sério e caladão naquela noite. Escolhido ao acaso, conseguiu remetê-lo aos velhos tempos em que podia se dar ao direito de cantar sambinhas num bar, tomar “todas” e voltar para casa com o sol nascendo, meio de pilequinho, mas com a alma leve.

Não sabia o fim-de-semana alegre que proporcionara a uma família surpreendida pelas mudanças de temperamento de um homem cujas exigências do dia-a-dia tinham feito esquecer da existência da vida simples, agora lembrada, muito mais feliz que a dele.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

A REZADEIRA



Era uma figura frágil. Da janela de sua casa humilde, deixava o olhar se perder nos morros que impediam um horizonte longínquo. O marido, visivelmente mais jovem, um bêbado inveterado que nada fazia para colocar centavos que fossem, na manutenção do casal. Pelo contrário, saíam dela as despesas com as cachaçadas diárias.

Lavava e passava para quem pudesse pagar e seu trabalho bem feito, sem uma ruga nos tecidos e doses certas de goma nos colarinhos das camisas masculinas.

A casa, quase um barraco, era limpa e nas prateleiras da cozinha, os poucos alimentos guardados em latas bem conservadas e os chamados panos de mão, alvos e com aplicações feitas à mão, trocados quase todos os dias.

Quando o marido se foi dessa para uma melhor, após uma bebedeira daquelas, e pelo qual colocou luto fechado por um ano, já era conhecida como respeitável rezadeira, com fama que atravessava as fronteiras do município.

Não era fácil controlar o número de pessoas que a procuravam, já que não admitia deixar de atender seus, digamos, clientes, sem provocar desconfortáveis encontros entre um e outro enquanto trabalhava.

Nada aceitava em troca de suas rezas. Nada. Afirmava sempre que um dom recebido de Deus não podia ser cobrado. A realidade é que sua fama aumentava, graças às curas proclamadas pelos portadores de diferentes mazelas.

Diziam as línguas ferinas, que chegou a ser investigada pelos médicos interessados em processá-la por exercício ilegal da profissão. Mas como acusá-la por rezar? Nunca receitara sequer um chá de ervas e seus materiais de trabalho não passavam de robustos ramos de arruda, água e carvão, este um verdadeiro “termômetro”, já que de acordo com a gravidade do “peso” trazido pelos clientes, descia ou subia no copo de água e dava a ela a dimensão de como sacudir a arruda sobre o corpo do doente. Ah, sim, durante as sessões, murmurava preces ditas de forma ininteligível, por mais atentos fossem os ouvidos que a cercavam.

Tranqüila, olhos bons e fala doce, conquistava a todos e chegada a velhice, uma boa alma alojou-a em outra casa, mais nova e menor que a anterior, economizando-lhe as forças e o dinheiro do aluguel, pago pela vida inteira. Perdeu a vista dos morros verdes, mas ganhou um pequeno quintal, onde as flores a entretinham. Talvez a mesma pessoa tenha lhe garantido a comida quando deixou de trabalhar, mas nunca falou a respeito, talvez até proibida por seu benfeitor.

Quanto às rezas, continuaram pelos tempos, para desespero do padre local que ao tentar proibir sua permanência durante as missas, recebeu ordens expressas do bispo para não mexer com ela. Mais uma vez aquelas línguas já citadas, veicularam ter o senhor bispo uma parenta curada pela velhinha...

Numa manhã fria, não abriu suas janelas e foi encontrada sobre a cama, toda arrumada como se estivesse preparada para passear, com uma flor nas mãos. Certamente previra o fim se aproximando e mesmo na morte, procurou evitar dar trabalho para os outros.

Enterrada com pompas reservadas para autoridades e afins, fez rir aos que conhecendo a história, assistiram o tal padre encomendando sua alma, talvez aliviado pelo fim da concorrência.

Suas proezas tornaram-se quase uma lenda e o túmulo onde foi enterrada, marcado apenas por uma pesada pedra, está sempre coberto de flores talvez trazidas pelos que se beneficiaram por suas rezas ou, quem sabe, de algum dos milagres que lhe são atribuídos em conversas à baixa voz pelas velhinhas da cidade. Não posso deixar de imaginar sua “descoberta” pelo Vaticano e a cara do velho padreco, fazendo simpáticas orações para não ficar mal com a nova santa.

HOMEM + NATUREZA = VIDA




Nada acontece por acaso, dizem os estudiosos dos mistérios desse Universo que nos cerca. Do nascimento de uma flor às marcas deixadas por um animal na estrada de terra, tudo está ali porque tinha de estar. Há, entretanto, os que duvidam dessa filosofia fatalista, até por uma outra regra, a do livre-arbítrio, através da qual podemos alterar nossos caminhos de um momento para o outro, desarranja tudo o que estava previsto, ocasionando mudanças no que deveria ser imutável.

Segundo teoria hinduísta, existem “ene” caminhos traçados e paralelos. No momento em que exercemos os direitos de mudança, apenas passamos de um para outro, continuando a obedecer ao que “estava escrito”.

Se pararmos para observar, a ordem que coordena todo o movimento dos astros faz-nos acreditar na presença de uma força maior que dirige e determina o desenrolar da vida. E quando falamos em vida, não nos atemos a nós, míseros grãos humanos, mas no gigantismo de algo muito além das estrelas, visíveis ou não. Essa ordem, essa disciplina de movimentos, luzes, gases, vácuos, gravidades, são tão exatos que, cremos, depois de identificados, trarão aos pesquisadores a surpresa de uma unidade monótona e sonolenta. Afinal, se a vida é uma eterna repetição de fatos e acontecimentos, por que o universo seria diferente?

Mas até nessa possível monótona e constante repetição, sente-se a força do administrador do sistema que, fazendo com que todas as suas “indústrias” funcionem no mesmo compasso, facilita seu controle e intervenção, caso constatados quaisquer desvios de conduta que possam prejudicar o bom andamento e o sucesso da empreitada.

Nós, partículas ínfimas desse portento natural, somos influenciados física e mentalmente pelos sutis movimentos da máquina maior, chamada UNIVERSO. Isso é evidente até porque participamos intimamente da engrenagem que o movimenta.

Daí concluirmos que se obedecidas as leis determinadas para o funcionamento da Terra e do Universo, não haveria motivos de se temer o surgimento de sanções originadas por má conduta. Tentando explicar melhor, se eu, pequeno parafuso, concordo em ocupar o espaço determinado e cumpro as funções para mim estabelecidas, recebo do “Operador” toda a lubrificação e reapertos exigidos para que a saúde da peça dure pelo tempo de vida estabelecido, sem ferrugens, trincas ou quebras extemporâneas. Concluído esse prazo, serei substituído e encaminhado para uma reciclagem que me permitirá, tempos depois, ser enviado para suprir novas funções em outra parte da máquina.
Que alguém ou alguma força natural criou e pôs em funcionamento a eterna engrenagem, não tenho dúvidas. Que se nós conseguirmos nos ater a cumprir nossas missões cônscios de que a tarefa determinada pela Força Maior não inclui excessos ou agressões à matéria da qual somos compostos, é uma certeza. Assim, seguindo sensitivamente o caminho que a natureza nos mostra, teremos todas as chances de ver uma estrada florida pela saúde,

CALÇADA


Até hoje não sei se era apelido ou sobrenome, mas Calçada encaixava-se como uma luva naquele crioulo alto, magro e falante, que zumbia em redor das mesas que ocupávamos na boemia da Tijuca, Rio Comprido, Estácio e afins.
Nunca soube dele exercendo qualquer atividade que lhe permitisse, sequer, pagar uma dose de qualquer coisa nos bares que freqüentava. Sempre adotado por um grupo, usufruía dos comes e bebes e, via-de-regra, participava dos debates fossem quais fossem os assuntos em pauta. Quando explodiam as gargalhadas, todos os demais procuravam saber qual era a mais nova criação lingüística do negão que, não conseguindo acompanhar a erudição dos eventuais companheiros, inventava termos ou os utilizava de outras maneiras, as mais estapafúrdias possíveis.

Há provas de que num debate em julgamento no Tribunal do Júri, ter um dos oriundos daqueles tempos usado uma de suas criações, inteiramente absorvida pela Promotoria e Magistrado:
- Ora, V.Excia, está usando de uma "prosopopéia manuelina".
Direitos autorais reconhecidos para o Calçada, que se tornara "imberbe", ao declarar que a partir daquela data, não beberia mais nada, promessa que não resistiu mais que um quarto de hora.
Mas o desajuizado tinha um anjo de guarda sempre de plantão. Dona Manuelina lavava roupa para as famílias da região e ainda arranjava tempo para fazer salgadinhos vendidos aos bares que freqüentávamos. Era o único pastel de camarão de bar, onde se identificava o "dito cujo" em seu interior.
Pagava as dívidas do amante e tornou-se figura conhecidíssima na Delegacia da Praça da Bandeira, onde se esgoelava num choro convulso, até que o "Seu" Delegado liberasse o Calçada, detido para averiguações que nunca davam em nada. Não era bonita, bem mais velha que o malandro e exercia sobre ele uma vigilância impressionante. Deixava que bebesse, cantasse seus sambinhas pornográficos e, até, que fosse preso por qualquer desconfiança levantada por algum policial novo na área, mas mulher era só ela e "estamos conversados". Tivesse algum rabo de saia na mesa eventualmente freqüentada pelo crioulo e, todos já sabiam, era questão de tempo para Dona Manuelina aparecer e rodar a baiana, como se dizia naqueles idos de 60.
Eis que anos depois, encontro o Calçada ocupando, surpreendentemente, o banco do trocador de um ônibus da Zona Sul. Reconheceu-me e fez uma festa tão grande que me deixou sem jeito sob os olhares dos demais passageiros. A pergunta tinha de ser feita:
- E Dona Manuelina, como vai?
Houve um hiato na conversa e enquanto arrumava algumas notas do seu caixa, até responder:
- "Larguei-la".
- Como largou... Era a mulher da sua vida, cara! Será possível que você não reconhece tudo o que ela fez para protegê-lo durante um bom pedaço de tempo... Protestei revoltado.
- Pois é. Continuou ele com os olhos voltados para as notas em sua mão. Caí na besteira de arranjar este emprego e ela se tornou um inferno. Examinava minhas roupas, procurava bilhetinhos nos bolsos e finalmente, um dia, peguei-a cheirando minhas cuecas... Mulher quando cheira cueca do marido ou tá a fim de levar uns bofetões ou de matar ele... Antes que acontecesse alguma dessas coisas, larguei-la.
Não pude deixar de dar certa razão ao Calçada.

OBITUÁRIO DE UM JOGADOR



Pensava que os jogadores profissionais tivessem deixado de existir quando parei de ler histórias em quadrinhos, onde viviam naquelas barcaças que navegavam no Rio Mississipi. Ledo engano. Há alguns anos fui apresentado a um homem de meia-idade, alto, bem vestido e fluente em pelo menos, quatro idiomas. Dono de um triplex no Cosme Velho, bairro da classe média alta do Rio de Janeiro (não sei o motivo dos ricos se colocarem nessa tal de “classe média alta”) casa na serra e outro belo apartamento em Cabo Frio. Seus investimentos, segundo contou-me um amigo comum, superavam a casa de milhões de dólares, em bancos nacionais e estrangeiros.
Viveu durante anos hospedado em navios de turismo internacional, onde os cassinos eram uma das atrações ofertadas aos ricos passageiros. Um dia, apaixonou-se e o pai da moça recusou-se a aceitá-lo se não tivesse um emprego "digno e honesto". Fez concurso para a Petrobrás, passou em primeiro lugar e em alguns anos galgou postos executivos, com uma eficiência que o fez bem vindo nas festas dadas pelos figurões da empresa, principalmente quando havia uma mesa forrada de veludo verde.
Certo dia cansou da vidinha monótona atrás da escrivaninha de trabalho e resolveu abrir uma Consultoria Financeira, onde aconselhava e orientava grandes fortunas em aplicações de risco. Os bens que paralisara quando resolveu ter uma vida "honesta", voltaram a crescer geometricamente. Afirmam alguns homens de mercado que chegou a ser sondado para participar da equipe do mega especulador Soros, o que não lhe interessou, visto que teria de sair do Brasil, onde filhos já alcançavam as faculdades e a velha mãe vivia seus últimos anos.

Tocava bem piano, fazendo uso das mãos de dedos longos para não perder a agilidade; entregava-se a exercícios onde calculava mentalmente os resultados - sempre corretos - de multiplicações com seis colunas de números no multiplicador. Além das mágicas onde fazia cartas de baralho aparecerem e sumirem, inventava mesas de pôquer em nossos horários de almoço só para, na terceira rodada, informar quais as cartas cada participante tinha nas mãos, acabando com a graça do jogo.Lembro-me bem quando dizia: "Jogue sempre, o mínimo que seja, mas jogue. Você não sabe o lugar que ocupa na fila da sorte e, quem sabe, não é o primeiro?"

Bom garfo e bom bebedor, nunca dispensou o cigarro "muleta psicológica" que o ajudava a resolver problemas sérios, segundo ele. Aí estava o único risco que não soube calcular. Foi-se após um derrame violento que o deixou sem reconhecer, sequer, os que lhe cercavam. Deve ter odiado perder seu último jogo, o da vida.

sábado, 7 de junho de 2008

MEUS ANJOS

De uma coisa tenho certeza. A da existência dos anjos. Não daqueles com asas enorme e feições ingenuamente angelicais, mas de outros bem mais atléticos e que metem o bedelho na vida da gente quando estamos fazendo besteiras demais.

Diferentes dos amigos que em certos momentos, com toda a razão, enfastiam-se de atender nossos problemas, eles estão sempre presentes ouvindo e dando conselhos que possam nos orientar.

O escritor Paulo Coelho afirma que nossos anjos mandam recados pela boca de terceiros. Quantas vezes isso não aconteceu comigo? Atoleimado na procura de soluções e vem uma criança, um pedinte maluquete da esquina mais próxima ou, até mesmo um colega de trabalho e com uma frase aleatória, coloca em minhas mãos a solução daquele problemaço que enfrentava até aquele momento? Quantas vezes saem de nossas bocas frases, conselhos, comentários que nós próprios, depois, duvidamos da própria capacidade em formulá-los?

Sei lá, mas acho que os meus anjos volta-e-meia tomam uma cerveja comigo, escarrapacham-se com as pernas cruzadas na poltrona ao lado e se fazem de desligados para as tolices de uma piada mal compreendida ou do comentário sobre alguém e do qual vamos nos arrepender mais na frente. É claro que deixam a gente errar... Fazem parte do jogo os tropeços e quedas, bases da reconstrução do muro desabado, por nossa culpa ou pelas próprias contingências da vida.

Mas tenho a certeza, no momento exato lá estão os braços fortes que nos sustêm e, juro, certo semblante divertido com a asneira que iríamos cometer e eles evitaram.

Note. Refiro-me a eles no plural. Não é um só anjo que nos guarda. No meu caso específico, afirmo que um, apenas, jamais conseguiria dar conta de todos os meus erros e anarquias. Tem que ser uma equipe onde todos se entendem pelo olhar e cujo espírito reinante seja o mais divertido possível. Até na hora da nossa morte, já que sabem mais que qualquer ser humano, do mundo melhor aguardando por nós do outro lado da fronteira.

NOVIDADES NA RELIGIÃO CATÓLICA

Dizia minha avó, que “o tempo sempre traz a verdade dos fatos”. Lembrei-me dessa citação ao tomar conhecimento da fascinante história do chamado Evangelho de Judas, documentos com mais de mil e setecentos anos encontrados numa caixa de pedra, lá pelos idos de1978.

Após longo périplo por estranhos caminhos que incluíram, até, uma briga de amantes onde pelo menos duas de suas folhas foram rasgadas pela mulher enfurecida pelas atitudes – ou falta de - do milionário detentor dos preciosos documentos, eis que chegam ao conhecimento do público com o sensacionalismo justificado pela participação em sua compra, da National Geographic que tem, além da famosa revista, um canal de TV a cabo.

Por eles, Judas não foi nada daquilo que aprendemos pela vida afora. Pelo contrário. Seria o mais próximo seguidor de Jesus e a quem coube a incumbência de, ordenado por Ele, fazer com que o Cristo fosse preso e executado, permitindo que “o espírito se soltasse do corpo que O aprisionava e pudesse seguir com Sua missão”.

Tal Evangelho, segundo os respeitados estudiosos que falaram a seu respeito,não era uma peça a ser levada ao conhecimento do público – nós - mas, sim, um documento para estudos mais adiantados do Cristianismo, cujas diversas correntes acabaram esquecidas ou destruídos pela Igreja Apostólica Romana.

Notem: Igreja Romana. Se, afinal, o Cristianismo surgiu e teve suas raízes plantadas pelas bandas do Oriente Médio e de lá se expandiu para o resto do mundo, por que Igreja Romana?

Teria algo a ver com os interesses políticos que nos trouxeram uma Bíblia constituída por Evangelhos que tinham por objetivo inocentar os romanos das atrocidades cometidas contra Jesus, culpando, assim, ao povo judeu sob cuja crença o Cristo nascera? Pode ser... Na verdade, ainda quase nada sabemos sobre o intrincado caminho trilhado pelo Cristianismo de seu início até bem pouco tempo, já que verdades definitivas se perderam por culpa daqueles que temiam a perda do poder caso o povo acessasse alguma coisa chamada cultura. Só agora, na era das pesquisas e questionamentos, podemos colocar sobre a mesa nossas dúvidas e contestações sem o perigo de condenações à fogueira da Inquisição.

Concordo que esses gestos extremos não são propriedades exclusivas do Catolicismo. Haja vista o Islã no Oriente Médio. Mais jovem seiscentos anos que o Cristianismo, estaria hoje passando pela fase Inquisitória do Século XV, não levássemos em conta a comunicação global do mundo moderno, malgrado saibamos das censuras a que se submetem os países mulçumanos daquele canto do mundo. De qualquer forma, para estudiosos observadores, é um excelente prato sua comparação com o que pregava a Igreja dos anos de 1400.

Quanto ao Evangelho de Judas, embora cercado pelo sensacionalismo dos meios de comunicação, deve ser alvo de estudos mais aprofundados – já prontamente rejeitados pelas autoridades eclesiásticas do Vaticano - para podermos aquilatar se realmente nos traz informações que, se confirmadas, têm a possibilidade de estremecer com as bases em que se apóia a Igreja Católica.

Como dizia minha avó, “o tempo dirá”.

HISTÓRIA DE UM RIO NEM TÃO ANTIGO ASSIM...


Os fatos narrados a seguir são verídicos e acontecidos lá pelos idos dos anos sessenta e poucos do século passado, afinal nem tão longínquos assim...

A rua era uma das muitas que se encontravam nos subúrbios daquele tempo com antigas e bem conservadas casas, calçadas largas, arborizadas e pistas de rolamento revestidas com paralelepípedos, palavra que infernizava o vocabulário do jovem Kiko, gaguinho que por lá morava.

Aproveitando que tinha uma área plana e reta, era o paraíso da rapaziada que no fim de tarde, resolvia jogar uma “pelada”. Carros por ali, só os dos moradores ou os da chamada “Rádio Patrulha”, veículos da Polícia Militar, pintados de preto e branco, e que na época atendiam prontamente aos chamados dos moradores da região, mesmo que fosse somente para acabar com o futebol de rua da garotada.

Os jovens logo descobriram que se retirassem dois ou três dos paralelepípedos de cada lado, teriam como encaixar ali as traves mandadas fazer “sob medida” e fruto de uma vaquinha entre eles e diferencial maior dos “campos” de outras ruas, cujos gols eram apenas marcados por um monte de pedras ou, mesmo, de camisas dos atletas.

O maior problema é que à direita da intermediária do time que jogasse na direção de quem se dirigisse para o fim da rua, estava a casa do seu António - com acento agudo, sim senhor - rico comerciante aposentado (tinha até carro com chofer uniformizado!) e cuja residência se destacava das demais, por sobre um porão habitável, fazendo-a bem mais alta e cujas varandas laterais tinham as paredes cobertas com azulejos portugueses e janelas portando vitrais coloridos.

Bola vai, bola vem e lá ia ela por sobre os muros da tal casa. Todos já sabiam da aversão do português pelo futebol e, assim, quando a pelota era devolvida, vinha rasgada pelo canivete do velho ricaço. Os jovens recolhiam o “balão” murcho e saíam discutindo entre eles, achando culpados pelo mau chute. Nada de palavrões contra o proprietário assassino de bolas ou pedradas nos ricos vitrais. Velhos e bons tempos...

O sossego da rua só era interrompido no Carnaval pelo “bloco de sujos” organizado pelos mesmos rapazes que vestindo roupas de irmãs, mães e afins, passavam dançando e cantando as marchinhas de sucesso, ao som de um bumbo, tamborins, pandeiros e muita animação. Era a única época em que os moradores se dignavam a vir para as calçadas ou janelas, jogando confete e serpentinas sobre os poucos, mas animados foliões.

À noite, antes de rumarem para os festejos do clube do bairro, iam para a Praça Tiradentes, assistir a entrada dos bailes, principalmente o do Teatro João Caetano, responsável pelas fotos picantes, publicadas na Quarta-Feira de Cinzas pelas revistas da moda. E foi ali que se deu o fato que iria mudar a história daquela rua suburbana.

Eis que Zé Carlos, um dos integrantes da turma, chamou a atenção dos demais para uma figura que entrava no Teatro abraçado a uma maravilhosa mulata: Seu António!!!

Todo mundo sabia que a família do português, nessa época do ano se transferia para Petrópolis, onde tinha um sítio.

Alguma coisa teria de ser feita e com urgência!!! Mais uma vez o grupo separou apenas o dinheiro para a condução da volta e, assim, conseguiu juntar um valor que corresponderia a três entradas para o tal baile. Zé Carlos, Waldemar e Cláudio, os mais “espadaúdos”, foram destacados para a missão e logo adentravam no animado salão, onde localizaram numa mesa de pista, seu António com a enorme mulata dançando em seu colo.

- Oi seu António... Divertindo-se, hein?

- Feliz carnaval pro senhor!

- Eu não sabia que o senhor gostava de carnaval!

Enquanto o português tentava sair debaixo da exuberante mulata, os três se escafederam na multidão de foliões e logo encontravam com os demais do lado de fora. Voltaram para o bairro às gargalhadas e nos dias que se sucederam, o plano continuou sendo desenvolvido. Por mais que o velho António andasse para cima e para baixo, não conseguia encontrar os três “mandriões”, não se arriscando a perguntar por eles para os demais rapazes que cruzavam seu caminho.

Para Dona Francisca, sua mulher, que estranhava a nova mania do marido, explicava:

- Andar faz bem, minha Senhora. Principalmente na minha idade... Exercita os músculos...

Uma semana mais tarde, lá estavam as traves colocadas nos vãos dos paralelepípedos e como se previa, num chute mais arrojado, passou sobre os muros da famosa casa. Coube a Waldemar ir bater palmas e pedir a devolução da bola. Para surpresa de todos, o próprio António desceu os cinco degraus que separavam a varanda do portão de entrada. Devolveu a bola e, entre dentes, disse:

- Vê lá, ó gajo, se vão começar a jogar esse negócio aqui pra dentro toda hora...

Evidente que Dona Francisca mais uma vez estranhou, mas seu António retrucou com a maior seriedade:

- Sabe, Senhora, cheguei à conclusão que é melhor gastarem as energias jogando um futebolzinho inocente do que ficarem por aí fazendo tolices...

E assim acabou o maior problema dos “atletas” daquela tranqüila rua do subúrbio carioca.

A ÁRVORE


Dona Jane e seu Alfredo moravam há mais de trinta anos naquela casa, que ficava na parte baixa da rua e o muro gradeado, sempre pintado de branco, separando o pequeno jardim da calçada, chamava atenção pelos cuidados que os moradores tinham com sua limpeza, motivando “destemperos” de seu Alfredo com os meninos da rua, que insistiam em escalá-lo. Compraram o imóvel quando ainda estavam noivos e Alfredo, então gerente de uma fábrica de perfumes, saldou o pagamento parcelado em poucos meses. Ali nasceram Cláudio e Nancy, seus filhos, nessas alturas casados e tratando de suas vidas longe dali. Todos os vizinhos sabiam que exceto com a mulher, Alfredo era um sujeito de maus bofes, como se dizia então.

Muitos atribuíam tal mau humor às gafes de Jane. Se já não fosse agradável morar na casa de número vinte e quatro de uma rua onde a molecada não deixava de aproveitar qualquer oportunidade para fazer galhofas, principalmente sabendo que qualquer provocação era devolvida pelo velho senhor com os impropérios de sempre, dona Jane, simpática e desligada, volta-e-meia metia-se em alguma enrascada que dava assunto por semanas para as fofoqueiras de plantão. A última aconteceu numa festa na casa de Dona Laura.

Os senhores Pinto e Oliveira eram dois grandes amigos. Ambos portugueses aposentados e com mais de setenta anos, encontravam-se diariamente para caminhadas pelas ruas do bairro, conversando e dando boas gargalhadas de histórias que só eles sabiam. No dia da festa de Dona Laura, o senhor Pinto, adoentado, não compareceu. Jane, atenciosa como sempre, foi até o velho Oliveira, que conversava com um grupo de vizinhos e perguntou em voz alta:

- Seu Oliveira, cadê o seu Pinto?

O silêncio foi total. Sem graça, Oliveira respondeu:

- Ele está adoentado, Dona Jane.

- Quer dizer que seu Pinto está doente? Mas o quê que ele tem?

Nessas alturas, Alfredo pediu licença e puxou Jane pelo braço para fora do grupo, enquanto se ouviam os risos abafados dos vizinhos.

Tinham um cuidado muito grande com a casa, onde raramente recebiam visitas. Não se sabe bem o motivo, mas certa ocasião resolveram estender o jardim até a calçada. Contando com a omissão dos fiscais municipais que raramente apareciam naquela região e com a paciência dos vizinhos, Alfredo quebrou o passeio e ocupou cerca de um metro da larga passarela com um canteiro onde plantou flores e vegetações ornamentais. No princípio, surpreendentemente paciente, replantava as mudas surrupiadas, até o dia em que, furioso, arrancou-as e gramou a área, declarando que, assim, imitava o Grajaú, bairro onde as ruas com suas calçadas largas, são enfeitadas com áreas cobertas de grama, até os dias de hoje.

Numa ocasião, enquanto aparava o tal canteiro, percebeu em seu centro um arbusto, pouco mais que uma muda, cuidadosamente plantado. Estranhou o fato e logo foi informado que a tal arvorezinha era um eucalipto, planta exigente e que só crescia em locais com solos úmidos. Era de conhecimento de todos que aquela parte da rua recebia o fluxo das águas do lado alto e muitas casas, inclusive a de Alfredo, foram construídas bem acima do piso normal para evitar infiltrações. Assim, o local era o ideal para o crescimento de um eucalipto.

Ignorando opiniões que iam da possibilidade da árvore prejudicar a fiação elétrica aérea dos postes, até a falta de simetria com as antigas árvores plantadas espaçadamente sobre as calçadas, seu Alfredo exultava com o tamanho, cada vez maior, da sua “plantinha”. Com rapidez a pequena muda tornou-se a árvore esperada que ignorando a rede elétrica, passou por ela e seguiu seu rumo em direção ao céu. Segundo cálculos de pseudo-entendidos só iria parar de crescer ao atingir uns vinte metros, mas o eucalipto, com um tronco que mal dava para ser abraçado, foi a mais de trinta.

Somente aí passou a ser conhecido da fiscalização. Ali compareceram duas ou três vezes até que, finalmente, surgiu o caminhão e serras elétricas para derrubar a imponente árvore. A reação foi imediata. Seu Alfredo saiu de casa bufando, enquanto a rapaziada do bairro se postava ao redor do tronco, impedindo o trabalho dos operários.

Com a polícia vieram os repórteres e com as notícias dadas em diversas rádios, a ordem que sustava a derrubada, até que novos estudos fossem concluídos. E lá ficou o eucalipto, ponto de referência avistado em toda a região:

- Não conhece a rua? Sabe onde tem aquele eucalipto? É na segunda esquina depois dele...

Na Copa do Mundo, uma bandeira brasileira, com as laterais fixadas por arames, foi presa lá em cima, de onde saiu graças à incompetência de quem a prendeu. Acabou se soltando e indo parar, levada pelo vento, no telhado da casa do seu Antero, que esbravejou pelas telhas quebradas.

O perigo de cair sobre a rua quando de um vendaval, não aconteceu; quanto à possibilidade das raízes levantarem a calçada e muros próximos, jamais se percebeu qualquer rachadura que pudesse creditar ao crescimento das suas bases. Passou a ser um ponto turístico:

- Se a Zona Sul tem o Pão de Açúcar e o Corcovado, nós temos o eucalipto!!!

Parecia uma obra indestrutível. Chegou a enfrentar um carro desgovernado que desmanchou sua frente ao bater nele, obrigando a presença dos Bombeiros para tirarem o motorista preso nas ferragens. O eucalipto? Exceto por um pequeno lanho, “nem te ligo”.

Por diversas vezes a fiscalização tentou convencer aos moradores dos perigos de uma árvore daquela altura para a comunidade. Contando com o apoio de um vereador muito votado naqueles cantos, surgia sempre o veredito:

- A árvore fica!!!

Cinco anos se passaram até a própria natureza resolver o problema. Foi uma daquelas tempestades que pareciam acabar com o mundo. Chuva violenta, trovões. Já era noite quando o raio atingiu a soberba árvore, rachando-a ao meio.

No dia seguinte, a consternação geral com a chegada dos soldados do Corpo de Bombeiros, ajudados por escadas especiais, subiram até seu topo e iniciaram o corte em pedaços, transferidos através de um guindaste, para o caminhão da Prefeitura que chegou juntamente com os veículos dos militares. Em pouco tempo, apenas um toco mostrava onde antes estava plantado. Mesmo esse foi liberto das raízes mais profundas e mandado para junto dos outros pedaços, amontoados na caçamba do veículo.

Ali terminava mais uma história da velha rua. Nem as cicatrizes do solo ficaram. Seu Alfredo recebeu uma intimação e teve de reconstituir toda a área. Rapidamente não se falava mais no assunto, até que numa noite, um vizinho viu seu Alfredo ajoelhado na calçada, plantando alguma coisa entre as falhas do passeio. Chegando mais perto, ouviu-o conversar animadamente com a pequena muda:

- Fique tranqüilo, filhinho. Muito breve você estará do tamanho do seu irmão que se foi...

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sexta-feira, 6 de junho de 2008

O SAPATEIRO

Luigi estava cansado. Chegou por aqui aos seis anos de idade e nunca mais parou de trabalhar. No começo engraxava os sapatos dos fregueses da oficina pertencente ao tio, depois foi aprendendo outras funções, até ser considerado um sapateiro de primeira.
Ninguém colocava uma meia-sola como ele. Grossa nos sapatos das crianças e finas, delicadas, nos dos adultos. Era difícil sem um exame mais atencioso, saber a diferença entre um sapato novo e o que passava por suas mãos.
Vendo a habilidade do sobrinho, Vitório ensinava-lhe os meandros da profissão e Luigi chegou, até, a confeccionar sapatos sob medida para um cliente da zona sul e que, vez por outra, aparecia por lá com fotos de revistas estrangeiras, mostrando novas formas e estilos, fazendo o jovem se esmerar em copiá-las, tornando-as peças únicas pelas quais o tal freguês pagava muito bem.
Pena que a maior parte dos que procuravam pela oficina fosse gente do bairro, o que garantia, mesmo, o dinheirinho de sua sobrevivência e a da família. Morava com os tios, Vitório e Giovana, casal que fez dele o filho nunca conseguido. Os pais ficaram na saudosa Itália e jamais os viu novamente. O que ganhava não dava para ir visitá-los e eles, por sua vez, eram humildes lavradores no sul de seu país.
Assim o menino se fez homem, conheceu Claér, sobrinha de uma família vizinha e depois de longo namoro, casou-se. Por exigência de Vitório e Giovana, continuaram morando na mesma casa e a moça adaptou-se com facilidade ao gênio franco e expansivo daquela família de imigrantes.
Vieram os filhos, a quem o sapateiro não deixou que nada faltasse, principalmente cultura, a qual jamais tivera acesso. Pedro tornou-se doutor, médico, enquanto Ângela, arquiteta, casou cedo com um bom homem e logo o encheu de netos.
Vitório e Giovana se foram e após anos de muitas lutas e momentos felizes, Claér também. Os filhos e suas famílias não deixaram de dar atenção e carinho a Luigi, mas ele se recusava a abandonar a casa herdada do tio para morar com um deles:
- Quem casa quer casa longe da casa em que casa...
Brincava ele, justificando sua atitude que, no fundo da alma, tinha outros motivos. Entre aquelas velhas, mas bem cuidadas paredes, havia recordações e ecos de risos dos quais não podia se separar. Ali estavam sua vida e o carinho com que fora recebido há mais de setenta anos; o primeiro dia em que Claér pisou ali, nervosa e sob um olhar marotamente severo de Vitório, fingindo "examinar o produto" que o sobrinho insistia em chamar de noiva... O nascimento e casamento dos filhos, o orgulho em vê-los formados e seguindo suas vidas...
Luigi sorria sozinho e em momento algum sentiu solidão. Passara alguns apertos, sim, quando sua Itália aliou-se aos nazistas e os daqui, o olhavam com certa hostilidade. Nem por isso perdeu a freguesia, até porque, era a única oficina do gênero numa distância onde se somavam alguns bairros.
Manteve a loja enquanto pôde. Assim como Vitório fizera com ele, preparou Miltinho, moleque inteligente e educado, para sucedê-lo. Enquanto as pernas agüentaram, lá estava, toda manhã, levantando as portas metálicas. Tal ânimo, entretanto, foi-se indo aos poucos. Passou as chaves para o mulatinho sorridente, surpreendeu-se agradavelmente no dia em que viu a oficina sendo aumentada e, mais tarde, tornando-se uma loja revendedora de sapatos fabricados pelas indústrias que começavam a crescer no país.
As coisas mudavam depressa e ele não conseguia mais acompanhar a velocidade dos acontecimentos. Por uma questão de prudência, evitava sair à rua desacompanhado e o surgimento da televisão não justificava que andasse por aí. As notícias chegavam rapidamente.
Fora-se a agilidade, mas surgiu uma candura que encantava a todos. Embora Dina, a empregada e anjo de guarda contratada pela família, não lhe deixasse faltar nada, a vizinhança estava sempre por perto, com senhoras trazendo-lhe petiscos e os amigos "tirando uma casquinha" da ampla tela, indo assistir com ele os jogos transmitidos pela tevê.
Ao seu jeito, Luigi era feliz. Andava pouco, falava pouco. Emagreceu, mas os exames que o filho obrigou que fizesse, mostraram estar bem. Um colega de Pedro chegou a comentar:
- Seu pai está com a saúde melhor que a nossa...
Mas Luigi cada vez mais se fechava no seu mundo de alegres recordações que lhe faziam tão bem. E foi assim que numa noite acordo e divisou, num canto do quarto, seus tios Vitório e Giovana sorrindo para ele. Repentinamente, de uma luz, surgiu Claér, também sorridente estendendo-lhe a mão.
A felicidade era enorme. Com a agilidade que perdera no tempo, levantou-se, segurou a mão da amada e seguiu-lhe os passos na direção daquela luz maravilhosa.
Assim se foi Luigi ao encontro de sua nova vida.

MÁRIO

Mário, Mariozinho, Mário Maluco. Atendia por qualquer desses nomes com a maior simpatia possível depositada sobre seus um metro e noventa e quase cento e vinte quilos mais ou menos bem distribuídos, já que a musculação praticada de há muito, não conseguira acabar com a barriga cultivada pelos chopes e pizzas, que adorava.
Morava com os pais numa bela casa no Alto da Boa Vista, bairro de classe alta do Rio de Janeiro, mas que foram obrigados a abandonar, transferindo-se rapidamente para uma outra na Barra da Tijuca, já que os vizinhos incomodados com os fortes miados que vinham do fundo do seu quintal, descobriram ali uma organizadíssima criação de onças que o Mariozinho tratava com mesma naturalidade dos que colecionam figurinhas...
Perguntei-lhe, um dia, se não tinha receio de um ataque daqueles felinos e me respondeu serenamente: "Não, desde o dia que aquela ali (o bicho pesava uns oitenta quilos) quis se fazer de engraçadinha e foi jogada contra o muro com um golpe de caratê. Ah, sim, esqueci de dizer que o rapaz era faixa preta nesse esporte.
Certo dia, deu um leve esbarrão num carro que freara bruscamente no centro da cidade. O motorista do veículo abalroado, talvez temeroso pelo tamanho do motorista do outro carro, saiu de seu automóvel portando uma barra de ferro e o Mário, sem o menor pudor, colocou uma das mãos na cintura e a outra na testa e numa de suas hilariantes imitações de "gay deslumbrado" (termos dele) iniciou uma gritaria em plena rua, chamando a divertida atenção dos passantes: "Socooorrrooo... O homem quer me bateeerrr". O sujeito, espantado, voltou para seu carro e foi embora. Explicação do Mário: "Se ele viesse mesmo, eu seria obrigado a machucá-lo..."
Esse era o Mário, Mariozinho, Mário Maluco, companheiro dos tempos de faculdade de Direito e que pretendia, depois de formado, fazer Mestrado e Doutorado no exterior numa época em que esses cursos eram raros e muito caros por aqui. Tinha "bala na agulha" para alcançar seus sonhos.
Eis que o tempo passa e, espantado, vejo o seu rosto na televisão pregando ardentemente uma religião em rede nacional, brandindo a Bíblia como se fosse a tal barra de ferro que lhe ameaçara um dia. A voz rouca e em tom entusiasticamente alto, fazia referências aos escritos sagrados e dava exemplos que comprovavam suas palavras. Eu conhecedor da "figura", confessei-me perplexo e resolvi achar o paradeiro daquele, agora, pastor.
Fui encontrá-lo num elegante templo e me reconheceu de imediato, saudando-me com um abraço quase sufocante daquele "armário" ainda semi-atlético e que me contou em menos de uma hora, sua vida.
Um casamento acabado e a quase morte do filho, salvo, garante, pelo poder das orações de um grupo cristão postado diariamente ao lado do leito do menino, nessas alturas, desenganado.
Mudou quando a criança se restabeleceu e resolveu dar uma "guinada" na vida intensa levada até então. O próspero escritório de advocacia passado para um companheiro, a admissão numa faculdade de Teologia e, hoje, na minha frente, era outro homem que me falava.
Não renunciou à fortuna deixada pela família e à vida confortável, mas agora tinha outra visão das coisas e, ainda assim, consguia vez por outra fazer-me lembrar do Mário que conheci. Nada, além disso.
Com todo respeito por sua opção, não posso deixar de afirmar que o outro, o Mário, Mariozinho, Mário Maluco, era bem mais divertido...

A GIGANTINHA

Não que fosse melhor ou pior que nenhuma das outras meninas do bairro. Só era mais alta, muito mais alta. Aí estava a diferença que fazia dela única, porém rejeitada pelas coleguinhas que se sentiam preteridas, já que nas festas Roberta, embora quase uma criança, chamava para si os olhares dos rapazes mais velhos.

Era sempre a última na fila que encaminhava os alunos para as aulas e obrigada a sentar no fundo da sala, para não atrapalhar a visão dos companheiros; o que se achava engraçado quando feito por qualquer menina da sua idade, era sempre tratado como uma bobagem fosse ela a autora: "afinal uma menina desse tamanho fazendo coisas de crianças mais novas..."
E assim foi levando a vida. Continuou crescendo e na faculdade acabou convidada a participar do time de basquete, mas preferiu o lançamento de dardos, onde adquiriu o respeito dos demais atletas, ao bater o recorde universitário na modalidade. Aí surgiu um novo problema, passou a ser considerada masculina demais e, novamente, deixada de lado pelas companheiras.
Conheci Roberta já com seus dezenove anos, atleta consagrada e que viajara pelo mundo, graças às marcas alcançadas, mas era tímida e pouco comunicativa. A vida lhe ensinara que, assim, tinha menos chances de ser maltratada. Um dia, fez um comentário que sintetizava tudo o que se passava: "Todo mundo acha que a gente por ser alta e forte, não sente dores e ignora sentimentos... Não imagina os tapas que recebo nas costas como cumprimentos e o que escuto de cruezas..."
Foi uma surpresa geral quando, um dia, viram-na de mãos dadas com um rapaz bem mais alto e bonito. Era também atleta e tinha vindo de outro país para fazer pós-graduação na faculdade que Roberta freqüentava. Enamoraram-se e algum tempo mais tarde, a moça se transferia para a terra do namorado com quem se casou.
Passaram-se os anos e há pouco tempo, quando tomava um chope com amigos na beira da praia, tive minha atenção provocada quando me apontaram aquela senhora altíssima, que passava pelo calçadão. Era ela.
Festejou o encontro e me apresentou ao neto, enorme também e que mal falava o português. Mudara-se para a Suécia, onde teve filhos, netos e, agora, voltara ao Brasil para resolver assuntos relativos a uma herança deixada pela mãe, falecida havia pouco.
Fiquei sabendo que tão chegou por lá, abandonou os esportes e se tornou uma respeitada professora de educação física, numa terra onde sua altura não fazia grandes diferenças junto a outras mulheres. Nunca mais voltara ao Brasil e quando perguntei o motivo, a resposta foi como um desabafo: "Lá tornei-me alguém que conseguia andar anônima no meio da multidão. Ninguém falava sobre minha altura e passei a me sentir, pela primeira vez na vida, uma pessoa considerada normal. O que viria fazer por aqui?".
Não pude deixar de lhe dar toda razão. Despedi-me na certeza de que não mais a veria, enquanto a observava continuando sua caminhada, chamando atenção dos demais passantes.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ÊTA VIDA...

Êta vida danada... Parece vagarosa, mas passa rápido pra burro. Vez por outra contradiz o que, antes, era verdadeiro, fazendo a gente ir e voltar pelo mesmo caminho sem saber se está indo em frente ou não... O certo é que, um dia, ela chega ao fim e a gente parte desta para a melhor sem saber direito o porque dessa daneira toda, o motivo de vir pra cá e depois ir embora sem escolha, sem nada...Cresci, casei, tive filhos. E os netos vieram para fazer uma barulheira maior quando junta todo mundo para se visitar ou botar os assuntos em dia. Aí é uma bebedeira daquelas e depois o vazio da casa quando se vão. Minha mulher já desistiu de perguntar, já que nem o padre sabe direito como tudo acontece e fica com essas histórias bestas de Adão e Eva, Paraíso, Inferno. Nem que tivesse nascido ontem não acreditava nessas coisas... Eu acho que se a gente vem é porque tem alguma razão de ser. Só para trabalhar e sofrer, não acredito que Deus fizesse uma maldade dessas com a gente.Quem sabe não é para por filhos no mundo e eles continuarem povoando essa terra de Nosso Senhor Jesus Cristo, fazendo mais filhos? Sinceramente, não sei...A única coisa certa é que os risos passam rápido e as dores demoram a ir embora. E a gente aqui, sem saber para onde ir...Não estou falando da nossa casa, mas da vida... Êta coisa danada... Não tem jeito mesmo, senão continuar indo, indo, até que um dia alguém - mesmo que seja do outro lado - explique o motivo certo disso tudo. Aí eu quero ver a cara do padre, quando os santos disserem que não existe nada daquilo que ele falou. Até que vai ser engraçado...
Deixei o pobre e velho homem, que pensava em voz alta sentado na porta do boteco interiorano cortando fumo para fazer um cigarro, enquanto analisava o que ouvira. Acho que ele não estava muito errado não... Êta vida danada...

BRASIL NO PRIMEIRO MUNDO

Definitivamente não consigo guardar títulos de livros e o nome de seus autores. Já cheguei ao absurdo de comprar a mesma obra duas vezes para, então, perceber que já tinha lido. Por outro lado, tenho uma capacidade admirável - pelo menos para mim - de guardar na memória os assuntos lidos e muitas vezes conversados, há, pelo menos, cinqüenta anos.
A esse respeito, nuns quarenta e tantos atrás, o jornal O GLOBO publicou artigo da CIA, ela mesma, a Agência Americana de Inteligência, em que previa uma modificação climática violenta na Terra, dentro de um período de cem anos.
Diziam eles - ou a agência - que com a elevação da temperatura planetária, os pólos iriam derreter e aumentar de maneira absurda a quantidade das águas oceânicas. Trocando em miúdos, teríamos uma invasão de todas as áreas litorâneas do mundo. Para se ter uma visão da coisa, no Rio de Janeiro só ficaria de fora o Cristo Redentor. Se atentarmos que a estátua situa-se a setecentos metros de altura... Com diminuição dos pólos, a Terra modificaria sua rotação, o que provocaria movimentação das placas tectônicas e o possível surgimento de erupções vulcânicas. E a tragédia não pararia por aí. Grande parte da fauna e da flora não resistiria à mudança tão rápida e violenta e teríamos a extinção de muitas espécies hoje existentes. Enquanto isso, locais hoje frios e temperados passariam a ser climaticamente quentes e vice-versa. Não posso deixar de pensar em esquimós de sunga, indo à praia...
Passam-se os tempos e novo relatório da mesma CIA, semanas atrás, afirma que o Brasil será uma das cinco grandes potências dentro dos próximos cinqüenta anos.
Tendo lido na Internet, que já se observam quilômetros quadrados de grama no pólo Ártico, onde antes existia gelo com alguns metros de profundidade; somando-se os quarenta anos do tal artigo aos próximos cinqüenta, quando nosso país estará no topo, restarão, apenas, dez anos para a gente aproveitar como integrantes do primeiro mundo, antes de tudo se acabar. Dez anos... Melhor do que nada, não acha?

FESTA DE ARROMBA


Constato que a velhice não chega aos poucos, mas nos atropela repentinamente. Lógico que sentimos os reflexos diminuindo, os cabelos embranquecendo - em alguns casos "azulando" - e os jovens nos chamando de "tio", mas a conscientização da coisa se dá de repente.
Exemplo? Fui visitar um amigo e o encontro abatido e cabisbaixo. Pergunto-lhe o que aconteceu e ele me mostra uma revista com a fotografia da Brigitte Bardot e um pequeno envelope com fotos suas, daquelas três por quatro. Frente à interrogação do meu olhar, explicou:
- Estava vendo essa revista e pensando "como essa mulher está velha"... quando a secretária entrou na sala e me entregou as fotos, que tirei ontem... Cara, eu também estou péssimo!
Embora meritória a luta contra ela, a velhice, termina sempre com um nocaute do qual acordamos zonzos e com péssimo humor. Tomei o primeiro conhecimento disso quando meu filho passou pela sala prendendo o nariz com os dedos polegar e indicador, enquanto eu ouvia músicas do "meu tempo", envolto em lembranças. Mais tarde, na tevê, mostraram um programa onde se festejava, eu diria pranteava, os Quarenta Anos da Jovem Guarda. Quarenta anos, meu Deus!
Lá estavam rotundos senhores, alguns insistindo com rabos de cavalo em cabelos pintados e outros vestindo roupas inteiramente incompatíveis com nossas verdades mais modernas. Vestutas senhoras, cabelos idem e sorrisos bons demais para serem originais, cantando Garota Papo Firme enquanto eles insistiam em manter a "fama de mau", subindo a Rua Augusta a cento e vinte por hora... O pior estava reservado para o Grande Final, quando, juntos, esgoelaram uma Festa de Arromba, na qual estavam presentes o rádio, a televisão e um monte de nomes que nada dizem para as novas gerações.
Ali, naquele momento, senti que o nocaute se avizinhava. Eu sabia quem eram todos aqueles convidados da tal festa e me peguei cantando baixinho a letra da música. Acho que já morri e esqueci de deitar...

A DONA DO PEDAÇO

É uma chácara. Sobrevivente das dezenas existentes por ali quando a rua era tranqüila, calçada com paralelepípedos e que deu lugar a um alargamento das pistas e diminuição do tamanho dos passeios, cobrindo as velhas pedras com asfalto, tornando-a uma ligação importante no trânsito entre dois bairros.
Mas lá está a chácara, razoavelmente tratada, nos seus quinze metros de frente por cem de cumprimento, onde uma das árvores, certamente centenária, ultrapassa em altura os prédios, paredões sem janelas, que delimitam aquele oásis gramado. De seus moradores pouco sei, mas divirto-me assistindo aqueles que habitam o quintal, avistados do apartamento em que moro.
Um casal de Huskies Siberianos, já idoso porém imponente, e uma cadela da raça Labrador, Angel, com seus um ano e pouco de alegria e desconcentração. Entre seus feitos, assisti quando atrapalhou a cobertura da outra cadela, deixando o macho, Sultan, em estado de irritabilidade incontrolada. Todas as vezes que conseguia se ajeitar para início do coito, lá vinha a Angel correndo e se jogava contra eles, "desmontando" o velho cão.
De outra feita, os netos do morador, crianças visivelmente desacostumadas com grandes espaços livres, após circularem pelo terreno, resolveram organizar uma "pelada" no fundo do terreno, pelo tempo suficiente para que a jogadora não escalada se apossasse da bola e a levasse, com seus passos elásticos, para dentro do canil. Lá se foi o velho avô entrar onde as crianças não se atreviam, mas a graça da brincadeira logo terminou, não sei se pelos protestos de Angel trancada no canil ou dos moradores dos prédios próximos, pela algazarra de ganidos que fazia, querendo voltar a participar da partida.
Seu dono, como disse, já não é mais um jovem e o peso - exagerado - faz dele um senhor com movimentos vagarosos e limitados. Sei a hora em que chega à tarde e estaciona seu carro na varanda lateral. Os cães o recebem num uníssono latido de boas vindas. Alguns momentos depois, inicia-se aquilo que ele intitula de treinamento e eu de bagunça total.
Convoca primeiro Sultan e Réa (a fême Huskie) e dá ordens de comando como: "sentado"... "deitado"... "rolando", etc. Não tenho como, do ângulo de visão da varanda, assistir ao show. Somente ouço. Parecendo satisfeito com a obediência dos cães mais velhos, manda-os para o canil e chama por ela: - Angel! Os próprios huskies antevendo o que virá pela frente iniciam um coro de latidos que naquela raça, parece mais um lamento.
E começa o espetáculo: "Angel, venha cá... Eu estou chamando, Angel. VENHA CÁ!" Nessas alturas a cadela está sob minha visão, no fundo do terreno, cheirando as plantas, olhando e latindo para mim e não dando a mínima "bola" para o dono. Aí vem o novo e furioso grito: ANGEL! Ela em seus momentos rápidos e vigorosos logo some da minha frente.
"Vamos", começa o homem, "sentada"... Gritando: "Eu mandei sentar... isso... não, xixi não!..." Breve silêncio seguido de uma ordem: "Jacira, vem limpar a sujeira que a Angel fez na área de treinamento". O que assim chama, é algo em torno de vinte e cinco metros quadrados cimentados. E continua a luta:
"Angel, senta! EU MANDEI SENTAR", grita, "não... não... tira essas patas sujas da minha camisa!" Novo silêncio, até que se ouve algo como o estalar de um látego batido sobre o piso. "Agora você obedece, ou eu... larga o chicote, sua imbecil... LARGA"!
Nessas alturas os vizinhos que têm varandas viradas para a mesma área, já lotam seus espaços e as gargalhadas são inevitáveis. Finalmente vem a capitulação: "Chega, não tem jeito... pro canil, já!" e colérico: "Eu disse pro canil", enquanto Angel volta para o fundo do terreno e satisfeita com a presença de tanta gente nas janelas, late em nossa direção, como se fosse o cão, perdão, a cadela mais feroz do mundo, ratificando seu poder sobre aquele pequeno reino de mil e quinhentos metros quadrados onde, definitivamente, quem manda é ela.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

UM SONHO ESQUISITO

Noite dessas sonhei que tinha sido eleito Papa. Vi-me de batina preta, sentado, enquanto outros religiosos, esses de branco e de costas para mim, arrumavam as roupas que eu deveria vestir. Pensava, ali, no nome que adotaria e, assim, acordei. Não quis voltar a dormir. Afinal, o assunto era interessantíssimo e comecei a analisar qual seria o nome que adotaria caso a coisa tivesse sido verdadeira.
O primeiro que me veio à mente, foi Severino. Sim, eu me nomearia Severino I. A partir daí, após aumentar os salários dos cardeais, negociaria com o governo italiano a aquisição de uma pequena área anexa ao Vaticano, onde construiria um puxadinho, isto é, um prédio em que morariam meus trezentos parentes que nomearia para trabalhar como funcinários públicos.
Evidente que a chegada de trezentas pessoas num país cuja população está por volta de novecentas (boas) almas acarretaria problemas imensos, inclusive um desagrado crescente das Congregações. A coisa poderia chegar a tal gravidade, que me obrigaria a tomar medidas extremas. Daí pediria asilo político ao Governo Lula e viria morar em Brasília numa casa onde o Exército tomaria conta do ex-Santo Padre.
Uma segunda opção era adotar o nome de Sebastian. Não o do Santo, mas o do parente que viveu na Europa lá pelo século dezenove e que além de padre era médico, e acabou curando o Papa Leão XIII de uma artrite deformante, usando apenas a água como remédio. Isso mesmo, o Padre Sebastian foi o criador daquilo que hoje chamamos de hidroterapia e cujas clínicas espalhadas pela Europa deixaram-no rico e industrializam até hoje, sabonetes e diversos produtos fabricados a partir de ervas e que fazem sucesso por lá. Aliás, a esse respeito, tive um colega de trabalho que, viajando pela Alemanha, foi atacado por um reumatismo repentino e procurou socorro numa clínica de "kneippkhur" - cura Kneipp... Acho que é assim que se escreve - localizada num convento. Contou-me que foi uma noite dantesca em que era acordado por freiras enormes que o viravam de um lado para o outro (ele é do tipo franzino) enquanto aplicavam compressas ferventes ou geladas, conforme a ocasião. Saiu de lá curado, mas jurando vingança assim que me encontrasse. Pela primeira e única vez na vida, fui desafiado para um duelo.
Mas voltando ao nome Sebastian, segundo sei, o apelido escolhido pode ter grande influência nas atitudes papais e se o velho padre era médico, com certeza eu iria voltar minhas atenções para a África e enfrentar os problemas de abandono, fome e doenças tão comuns por ali. Muito bem, mas nesse momento teria de encarar a AIDS e a necessidade do uso de preservativos, condenados pela Igreja. Olha eu de novo, batendo de frente com os preceitos da Santa Sé. Evidente que os enfrentaria e, daí ver sobre mim o bafo odiento do OPUS DEI, quem sabe planejando uma dose letal de veneno no meu arroz com feijão. Não teria jeito. Novo pedido de asilo pro Lula.
Melhor esquecer tudo isso e tentar voltar a dormir. Definitivamente, o ex-deputado Severino é que estava com a razão. Não dá para ser Presidente da Câmara, nem Papa, sem o apoio do baixo clero.