terça-feira, 2 de dezembro de 2008
O DESASTRE
Mas o quê fazia ali parado? Como não se machucara no violentíssimo acidente? Nem um arranhão. Sequer amarrotara a elegante camisa esporte que usava pela primeira vez. Tenta se aproximar, mas as pernas não obedecem. Fica, ali, assistindo os soldados do Corpo de Bombeiros retirarem um corpo do meio daquela lataria disforme. Êi, aquele corpo era o dele. A ficha caiu rapidamente: “Morri... Ih, cara, eu morri...” Disse para si.
Não teve pânico e não viu luz alguma ou qualquer anjo vir recepcioná-lo, como sempre aprendera que aconteceria quando passasse “desta para uma melhor”. Corrigiu: “Daquela para esta aqui...”
Recuperara os movimentos e andava entre os que trabalhavam nos destroços . Só não conseguiu olhar para seu próprio corpo, nessas alturas sobre uma maca e coberto por aquele plástico preto que usam para esconder os cadáveres da curiosidade pública.
Levantou a cabeça na direção do céu, na esperança de ver algo que indicasse o caminho a seguir. Nada. O jeito era acompanhar o corpo, fosse para onde o levassem. Instituto Médico Legal. Nada de bom viu por ali. Corpos nas geladeiras acompanhados pelos que deviam ser seus espíritos, recusando-se a abandona-los. Batiam os queixos e se encolhiam de frio com a temperatura abaixo de zero graus naquelas gavetas. Ele não; ficavam como se paralisados; ele andava por ali embora não procurasse nada.
Eis que chega sua mulher para reconhecer o corpo. Engasga num soluço quando descobrem seu rosto. Afunda a cabeça no peito do pai – seu sogro – que deveria estar exultante com sua morte. Afinal, não gostava mesmo dele. Passou por sua cabeça a possibilidade de dar um susto naquele velho chato, mas não sabia como fazê-lo.
Dali para um velório de luxo – pelo menos estavam gastando seu dinheiro de forma a lhe prestarem uma última homenagem - onde a mulher acabou trocando o ombro do pai pelo do... Epa! Aquele cara é o Dida, namorado dela antes de se conhecerem... E que liberdade era aquela, de cabecinha no ombro e o troglodita alisando seu braço. Será que já havia alguma coisa antes da morte dele? Chegou mais perto e ouviu uma frase definitiva: “Calma, meu amor, dizia o Dida, agora que ele se foi, pode contar comigo definitivamente”.
A raiva era tanta, que deu um grito daqueles, tirados do fundo do peito. Foi aí que acordou. A mulher, assustada, sentada na cama a seu lado e ele com a camisa do pijama empapada de suor.
- O que foi, querido... Disse ela... Foi um pesadelo?
A resposta veio imediatamente:
- Espero que tenha sido, sua...Sua... Falsa.
Deitou-se novamente e rapidamente adormeceu, enquanto a mulher, com os olhos arregalados, perdeu o sono, definitivamente.
terça-feira, 18 de novembro de 2008
FAZ MUITO TEMPO
Lembranças inexplicáveis retornam, sem razão alguma que as motivasse. Simplesmente surgem. Mostravam-no ainda um menino e os que estavam à sua volta, somente imagens embaçadas. Só aquela figura se fazia clara e bem definida. Severa, mas dona de uma suavidade única para conversar com as crianças para as quais dava aulas na velha escola suburbana.
Era quieto, terrivelmente disciplinado, mesmo para os tempos em que a educação que lhe era imposta ainda guardava resquícios do século XIX. Temeroso e submisso granjeava a simpatia dos que com ele conviviam até aquele dia, onde alguma coisa mudou e o fez mais respeitado entre os companheiros de turma.
A própria professora, que lhe volta à mente, passou a ter um outro olhar para o garoto que, momentos antes, era o exemplo sempre citado, não só pelas notas acima da média, mas também pela quietude e mansidão.
Foi uma explosão momentânea, onde a personalidade contida pelas imposições familiares, veio à tona surpreendendo todo mundo. Ali aprendeu o significado do velho ditado: ”Não cutuque onça com vara curta”. Afinal, não podia admitir que fosse interpretado como um covardão sem personalidade sujeitando-se a qualquer coisa que lhe impusessem. Ninguém ainda sabia, mas uma atitude dessas contra ele era um terrível equívoco. Após uma discussão sem a menor importância, um atordoante tapa no rosto e a reação imediata. Não sabia lutar, mas aprendeu ali; nunca brigara com alguém, mas a fúria da reação parecia desmenti-lo. Com um soco cuja potência até ele mesmo duvidava, jogou o oponente por terra e bateu, chutou, cuspiu, até que um adulto, não se lembra quem, conseguisse retira-lo de sobre o corpo do outro menino, em tese maior e mais forte que ele, nessas alturas assustado e com vistosas escoriações e hematomas que começavam a se formar.
Levados à presença da Diretora, a “vítima” assumiu sua culpa, até porque diversos alunos amontoavam-se na porta do Gabinete, prontos a darem seus testemunhos contra ele. O jovem oponente era conhecido por atos de valentia e delinqüências extemporâneas. Sua derrota fazia desabar o mito construído graças às violências contra outros colegas.
Após ouvir as severas reprimendas da velha senhora, o novo herói da garotada voltou à sala de aula, já que o tempo de recreio se extinguira há muito. Recebido por um silêncio tumular e o sorriso de conivência e admiração de alguns, encaminhou-se até a professora com o intuito de se desculpar, porém ela não deixou que falasse e dirigiu-se à turma de forma eloqüente.
Sem incentivar diretamente seus atos de minutos antes, chamou a atenção da turma para que se sentissem fortes nos momentos da vida onde isso era exigido; da rigidez de atitudes que demonstrassem personalidade e segurança. Enfim, sem aplaudir diretamente a reação do aluno, fez dela o exemplo para entenderem a necessidade de imporem suas razões e motivos nos momentos oportunos.
Passou-se algum tempo e chegou ao conhecimento dos pais dos meninos que a professora, dias após esses acontecimentos, desquitara-se. Teria de enfrentar uma sociedade preconceituosa a respeito de mulheres separadas, mas o fez. Só muito tempo depois, soube-se que dissera ter aprendido com um aluno o momento em que o amor próprio não poderia ser esquecido.
Uma criança dando exemplos de vida ao adulto. Pensando bem, quantas não foram as vezes em que em nossas vidas fatos semelhantes não nos levaram a tomar decisões através de soluções trazidas por elas?
A vida corre, a recordação torna e, de uma forma ou outra, fica a história que traz uma mensagem efetiva. Bem vinda, portanto, a volta de tais imagens dos velhos tempos da escola primária.
domingo, 19 de outubro de 2008
O CRAQUE
Titinho, cujo nome de batismo era Alberto e ninguém sabia onde e quando surgira o tal apelido, sempre foi o melhor aluno da turma. Do primário ao vestibular sempre ostentando medalhas douradas, distinção dada aos mais aplicados. Passou para a faculdade de engenharia no primeiro lugar, o que lhe rendeu entrevistas nos rádios e jornais da cidade. Respondia a todos com a mesma falsa modéstia: “Sei lá... Acho que foi pura sorte”. Noites de sono perdidas, exercícios exaustivamente repetidos, livros lidos e relidos e, no final, “pura sorte”. Além de “nerd” era um chato.
Falava com o rosto quase colado ao do ouvinte, muitas vezes obrigando a “vítima” a dar um ou dois passos para trás; arrumava o colarinho do uniforme dos colegas enquanto discorria sobre assuntos longos e sem qualquer interesse. Sua comida era escolhida com atenção pela mãe, já que detestava tudo que os outros familiares adoravam e por aí tocava sua vidinha sem sal.
Mas nos tempos de garoto, Titinho também tinha suas frustrações. Adorava futebol, mas só conseguia jogar quando a bola era dele. Fora isso, apenas se algum dos meninos saía mais cedo e, mesmo assim, era imediatamente deslocado para o gol, lugar nacionalmente guardado para aqueles cuja capacidade de jogar são consideradas nulas pelos demais atletas.
Chegava sempre em casa muito suado, jogando ou não, já que torcia contra os dois times, enquanto amargava a reserva.
Vez por outra, o time da rua disputava partidas em campos espalhados pelos bairros próximos. Na estação do Sampaio, naqueles tempos de um Rio de Janeiro menos explorado demograficamente, lá do outro lado da linha férrea, existia uma grande área onde os campos ficavam uns ao lado dos outros. Ali se pagava aluguel para usá-los e a garotada juntava as economias para participar da festa. Titinho sempre estava entre eles, mas via de regra, ocupava a posição de reserva do goleiro.
Aproveitando as férias escolares do meio do ano, havia um torneio entre as equipes de diversos bairros. Coisa chique, com os atletas uniformizados, de meias e chuteiras. Os juízes escalados pertenciam à Federação e, diziam, muitos olheiros de grandes clubes assistiam às partidas procurando identificar novos valores para o futebol carioca.
Havia, também, grande movimentação de familiares, principalmente nos jogos dos fins de semana, orgulhosos pela participação de seus filhos, sobrinhos e netos queridos. Afinal, eram eles quase sempre os financiadores dos uniformes, aluguel dos campos e, até, do lucro que ia para o bolso de alguém.
Aquele mês de julho tinha sido particularmente desagradável. Choveu muito e o frio fora exagerado para os padrões cariocas. Se os moradores da cidade do Rio de Janeiro já se agasalham com temperaturas abaixo dos vinte e poucos graus, imaginem com os termômetros marcando inusuais quatorze, quinze graus. Só faltavam surgir botas para neve e os esquis. E foi sob esse clima que transcorreu o campeonato.
O time da velha rua, se não era o pior também não poderia ser colocado entre as equipes que se destacavam, como às do Campo Grande e a do Serra Negra, sempre disputando entre si os primeiros lugares. As chuva e os campos enlameados, acabaram por nivelar “por baixo” as disputas e, assim, a equipe de Titinho, reserva do goleiro, foi indo. A semifinal contra o Campo Grande terminou com o escore de um a zero surpreendente, colocando a turma da rua para enfrentar o Serra Negra, que encaçapara seis gols no último adversário, na final a ser realizada no domingo seguinte.
Todos sabiam que o Serra Negra era uma equipe organizada por um bicheiro lá dos lados da subida da Serra de Petrópolis e que tinha, até, treinador remunerado. Segundo as más línguas, os jogadores também recebiam uma “ajuda de custo” e, dali, já tinham saído craques para os times da primeira divisão. Para aquele jogo, Bocão, o tal bicheiro, estabeleceu concentração. Alugou um sítio pelas bandas de Xerém e lá ficaram os componentes da equipe, incluindo o próprio Bocão, figura pouco presente nos treinamentos, embora mantendo sempre por perto um de seus homens de confiança.
Finalmente chegou o domingo que, para variar, estava chuvoso e com um vento frio soprando forte, principalmente no descampado formado pelo conjunto de praças esportivas do Sampaio. A torcida do Serra Negra lotou um ônibus, enquanto os familiares do time de Titinho, postavam-se do outro lado do campo, intimidados pelas bandeiras e ferozes gritos de guerra da torcida adversária. Bocão, com o tradicional colar de ouro de um dedo de grossura, charuto na mão e sob o guarda-chuva que um de seus auxiliares segurava e o acompanhava em todos os seus movimentos, evitando que um só pingo caísse na camisa ou nos óculos escuros do chefe, lá estava. Postado à beira do campo, na linha que divide o centro do gramado, falava mais que o próprio técnico.
Para o timinho da rua, já era uma vitória ter chegado às finais do torneio e, agora, era só armar um bom esquema defensivo para perder de pouco.
O jogo começou e se não fosse a lama, que provocava escorregões e quedas ridículas – inclusive do juiz – e o Serra Negra teria imposto uma considerável vantagem no primeiro tempo, que acabou zero-a-zero.
A partida já ia pela metade do segundo tempo, quando o goleiro Batista, que defendera tudo até ali, quebrou o dedo mínimo da mão direita, tendo sido levado imediatamente para o hospital, no carrão cedido pelo bicheiro. Um ar de desânimo tomou conta de todos, quando Titinho entrou em campo, vestido de preto, após um grotesco aquecimento.
Reiniciada a partida e para alívio dos rapazes do time da rua, o Serra Negra arrefeceu um pouco, dando tempo para que respirassem. Mas aos trinta e cinco minutos, ouve-se um grito. A voz grave de Bocão anunciava: “Tá na hora, gente... Todo mundo pra frente!
Ali começava um intenso bombardeio contra o gol de Titinho. Felizmente a pontaria dos atacantes do Serra Negra não estava boa e as bolas que chegavam até ele, eram fracas, amortecidas pelas poças d’água ou atrasadas por seus próprios defensores.
Faltando menos de cinco minutos para o final, o centro-avante dribla dois zagueiros e parte com a bola dominada na direção do gol de Titinho.
- Sai, vai nele!
O rapaz, indeciso, finalmente resolveu sair de encontro ao adversário. Três ou quatro passos e escorrega na lama. Com a impulsão, sentiu seu corpo voando para a frente, enquanto o atacante enchia o pé. A torcida exultou. A bola explodiu no peito do goleiro e voltou para o meio do campo. Titinho, com o peito ardendo, voltou para o gol ouvindo um impropério de Bocão e gritos de “dá-lhe garoto”ou “beleza”dos companheiros. Pouco depois o jogo acabava e o resultado seria decidido na cobrança de pênaltis.
Cinco chutes para cada time. O primeiro a marcar foi o pessoal da rua. O Serra Negra empatou. Novo gol da meninada e outro empate do “Serra”. Aí deu-se o milagre. Após o terceiro gol de seu time, Titinho resolveu ficar imóvel no próximo chute, fazendo, apenas, o popular “golpe de vista”. Até ali sempre se atirara para o lado errado, chafurdando na lama. Que se danassem todos. Estava molhado até na alma e eles que fizessem o que bem entendessem. O tal centro-avante, aquele do chute forte, soltou seu petardo bem no centro do gol, na direção do peito de Titinho, que só ouviu o barulho e, novamente, a ardência do couro batendo na pele. Lá foi a bola, de novo, parar no meio do campo.
A meninada passou a acreditar na possibilidade de uma vitória, embora Titinho efusivamente festejado pelos companheiros, continuasse a repetir: “Foi pura sorte...”
Novo gol da turma da rua. Era uma questão de vida ou morte para o time de Bocão. Se errassem a próxima penalidade, o campeonato estaria perdido. Zunim, o “becão” do Serra Negra, ajeitou a bola e olhou para Titinho como se dissesse: “Quero ver se agarra essa...” Tomou uma grande distância e partiu. O goleiro, naqueles poucos segundos, pensou: “Finjo que vou para a esquerda e me atiro para a direita”. Só não contava que a lama fizesse seu pé falsear e o fingimento tornar-se real, fazendo-o cair para a esquerda. Um salto, diríamos, milimétrico, mas o suficiente para a bola ficar presa entre seu corpo e o chão. Sua equipe ganhara o torneio graças a ele.
Foi carregado em triunfo e recebeu uma medalha a mais, como o “jogador revelação do campeonato”. Lá pelas tantas, um sujeito entregou-lhe um cartão:
- Se quiser fazer testes num time grande, é só me procurar... Você tem futuro, garoto.
Agora Titinho tinha uma história com comprovantes: medalhas, fotografias e troféu. Nunca mais pediu para jogar, embora sempre convidado. Não queria quebrar o encanto daquele momento glorioso que, sabia, jamais iria se repetir.
Assim, sempre que podia, contava a história para o primeiro desavisado que aparecesse, sem esquecer dos mínimos detalhes de tudo o que acontecera, concluindo sempre com a tradicional “modéstia”:
- Sei lá... Acho que tudo foi pura sorte...
Era um chato.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
MEU BRASIL BRASILEIRO...
“Peraí, não empurra porque minha marmita vai entornar...”
Houve breve silêncio, seguido de um murmúrio crescente, que se tornou uma gargalhada geral. A partir daquele momento, o terror diminuiu e em passos coordenados, a multidão começou a descer e todos alcançaram a rua.
Botequins guardam vastíssimo corolário de frases e verdades aleatoriamente ditas. Num deles, havia um quadro pendurado na parede azulejada, onde se lia:
“Aqui, após a terceira dose, todos os problemas do país são resolvidos.”
Um bêbado, desafiando a lei da gravidade e equilibrando o corpo para trás num ângulo de quase quarenta e cinco graus, na porta de um desses “estabelecimentos”, declarava em alto e arrastado som:
- O Brasil tem como exportar eternamente, jogadores de futebol e gente corrupta.
Engraçado? Talvez, mas verdadeiro. Quanto aos quase garotos, agora identificado por “olheiros” do futebol europeu nos campos de várzea interioranos, nada a acrescentar. Cada vez mais vemos e ouvimos falar de figuras e nomes desconhecidos brilhando no Velho Continente, muitos já naturalizados e podendo disputar campeonatos pelas seleções dos países que os adotaram.
E quanto à gente corrupta? Depois de anões, mensalões, sanguessugas e quantas outras denominações dadas aos escândalos políticos dos últimos tempos, podemos encarar de forma mais séria a afirmação do bebum.
Um velho político afirmou em conversa informal da qual meus ouvidos participavam, estar a corrupção de tal forma enredada no poder público, que se puxarmos um fio da “teia”, digamos, numa estatal, poderemos fazer “desabar” um Ministério lá do outro lado da praça dos ditos cujos em Brasília, que nada teria a ver com a função da tal estatal.
Somos um país que tem a corrupção em seus alicerces. Se o Bispo Sardinha, aquele literalmente comido pelos índios, acumulou fortuna cobrando dobrões de ouro para absolver os pecados dos que podiam, pagar, ainda nos primórdios do nosso Brasil varonil, o que não imaginar dos que administram fortunas em investimentos governamentais? Esse é um assunto que poderia encher páginas, nada mais surpreendendo ao sonolento leitor, infelizmente já acostumado com isso.
Difícil acabar com a corrupção? Muito, já que se não for um movimento de grande parte da sociedade, haverá sempre a possibilidade da ação coerciva de autoridades desonestas, pulverizando os que levantaram suas vozes. Exemplo? Lá vai:
- Um empresário forçou o flagrante do pagamento de propina a determinado fiscal. Jornais e TVs mostraram a notícia. Passado menos de um mês, TODOS os órgãos fiscalizadores municipais, estaduais e federais, se abateram sobre o honesto e otário empresário que até hoje, briga na Justiça contestando a chuva de multas arbitrárias daquela época.
E lá vamos nós elegendo novos mandatários sem saber se, um dia, alguém com uma piada igual a do rapaz descendo do prédio em chamas, provoque uma reorganização social espontânea que acabe com esse tenso e vergonhoso estado de coisas.
domingo, 21 de setembro de 2008
SETEMBRO FRIORENTO
Aproveitam os profetas do apocalipse para declarar tais desarranjos climáticos como mais um sinal das hecatombes que nos esperam até que cheguemos na primeira esquina do ano de 2012, apontado pela equalização dos calendários maias, astecas, egípcios, fenícios & Cia. Ltda., como o ano que todos indicam ser o último da era humana na face da Terra.
Curioso, verdadeiro, fantasioso... Sei lá e não vou me preocupar com esse final dos tempos, se uma bala perdida ou um avião com o reverso travado, não deixar que chegue vivo até lá para saber se vai ou não acontecer.
Daí que uma sonora gargalhada na frente de um chope gelado e da porção de fritas quentinhas, faz com que nos esqueçamos dessas tolices, desde que, é claro, o calor volte a enfeitiçar as noites e provocar justas reclamações, entre um gole e outro.
Por enquanto, frio e caldo verde. Que chatice.
domingo, 31 de agosto de 2008
CAMINHADA
Ignoro o vento frio vindo do mar e continuo minha caminhada em direção à coisa nenhuma, que deve ficar ali por volta do princípio do Leme. Esse negócio de andar como exercício, se não fizer bem ao corpo o faz para a mente. Esqueço os problemas e se me perguntarem o que penso enquanto ando, certamente não saberei responder.
Vai daí que entre um atlético corredor e uma velhinha dentro da malha vermelha contrastando com seus cabelos – e tênis – brancos, vou chegando ao final da caminhada. Cansado? Nem tanto. Um pouco frustrado, talvez, pela juventude que se foi, mas é lembrada a todo instante pelos que passam – ou ficam – pelo caminho.
Atravesso a rua e volto para casa, onde a vida retornará ao seu rumo, até que nova caminhada se inicie.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
NADA A DECLARAR
(vancorreia.blogspot.com)
Nada a Declarar.
Reticências, pontos parágrafos ou não, nuvens pesadas que irão desabar sei-lá-aonde, trazendo risos ou choros aos mais necessitados.
Nada a declarar.
Crianças descalças, lavando os pés na água da sarjeta, enquanto mendigos exclamam frases sábias que os livrem de banhos desgastantes.
Nada a Declarar.
Businas acordam os de andares mais baixos e avisam se iniciar um dia de trabalho ou o marasmo para uma população neurótica, caótica, apostólica, mas que acredita em espíritos, cujos divans dos psicanalistas encheria caso houvesse dinheiro para isso.
Nada a Declarar.
Nossos atletas voltando do Cubo D’Água, com poucas medalhas, mas com muita vontade de cometer grandes pecados intitulados de carboidratos, gorduras saturadas e afins.
Nada a Declarar
Serginho Malandro, candidato a vereador, assim como Havanir, dermatologista e mestra em Photoshop, exibindo seu rosto impecável em website produzido para sua eleição, da mesma forma que os sanguessugas processados, mas liberados pelo Supremo para continuarem a perpetuar a desonestidade em nome de um povo maltrapilho e ignorante.
Nada a Declarar.
Balas perdidas que encontram cabeças, peitos; risos bêbados que encharcam as madrugadas com a tolerância zero da lei que não se sabe se vai pegar... Pega o ladrão, o ônibus, a vizinha bonita, o caixote na feira... Pega o bonde da vida e toca em frente.
Nada a Declarar...
Dercy Gonçalves chegando ao céu, perdida sem seus palavrões e decepcionando anjos e querubins, ávidos pela libertinagem e devassidão que só conhecem das lendas..
Nádegas a Declarar..
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terça-feira, 19 de agosto de 2008
O BRUXO
Otaviano era um menino só. A mãe não permitia que descesse para brincar com as crianças na rua e nenhum moleque se aventurava a subir a escadaria. Supria a falta de amigos com sua imaginação fértil. Fazia bonecos de papel retorcido, que podiam ser “cowboys” ou bandidos nas aventuras engendradas; as armas utilizadas pelos personagens, eram pequenos pedaços de arame que faziam as vezes de revólveres, espingardas ou espadas, de acordo com as exigências da história.
Otaviano cresceu e durante a vida escolar, sempre foi um aluno mediano e quando aprovado no vestibular para uma faculdade pública de medicina, surpreendeu a todos. O pai fazia o impossível, mas os livros e materiais caríssimos exigidos pelo curso, obrigaram o rapaz a dar aulas de matemática, física e química para alunos do curso médio em dificuldades com aquelas matérias, ajudando nas despesas trazidas pela faculdade. O sucesso foi tanto, que passou a substituir um amigo, professor de pré-vestibular, quando este precisava faltar.
Conseguiu a residência médica graças a um colega, filho de político famoso, que sugeriu seu nome para a vaga recebida de presente, face ao desinteresse em “viajar” até aquele hospital suburbano. Depois de muitas suturas, partos e colocação de ossos em seus devidos lugares, viu-se médico. Alugou um sobrado próximo de casa e começou atendendo os clientes que pouco a pouco surgiam, além dos chamados noturnos onde as famílias com certa habitualidade, não tinham sequer como pagá-lo e ele ainda as ajudava dando amostras grátis dos remédios receitados, recebidas dos representantes de laboratórios que o visitavam.
Seu jeito carinhoso e brincalhão, cativava mais clientes e chegou o momento em que assumiu as despesas da casa, aliviando o orçamento dos “velhos” e até conseguiu comprar um carro de segunda mão. Tinha uma vida razoavelmente tranqüila, onde as moças surgiam e desapareciam para alívio do pai e preocupação da mãe, interessadíssima em vê-lo dando-lhe um neto, já que a irmã casara e viajara para o fim do mundo, em companhia do marido, engenheiro de barragens.
Certa manhã, enquanto tomava seu café, a velha empregada que o conhecia desde menino, quando ainda trabalhava para outra família vizinha, o interpelou:
- Tavinho, é verdade que você é espírita?
O rapaz surpreendeu-se e rapidamente passou por sua mente a divertida história ocorrida no passado, quando convencido por um colega foi visitar uma Casa Espírita. Lá para as tantas, a mulher sentada ao seu lado “manifestou um espírito” e deu sonora gargalhada. O susto foi tamanho que quase foi parar no colo do amigo.
- Quem... Eu?
- Estão dizendo por aí que você já sabe até qual a doença do paciente, mesmo antes dele sentar na sua frente; que distribui remédios de graça... Eu, heim, se continuar assim nunca vai ficar rico...
A última frase já foi dita como se pensasse alto, enquanto Otaviano rumava em direção ao sobrado ainda comendo um biscoito. No caminho, surgiu-lhe a idéia. Iria testá-la, só por divertimento, nos seus clientes daquele dia e aguardar se haveria alguma reação.
Quando o primeiro consulente entrou na sua sala, encontrou-o com os olhos fechados e as mãos apoiando a testa. Com um gesto quase teatral, mandou que a “vítima” sentasse, abaixou os braços cruzando as mãos e olhando fixamente para o desconfiado cliente. Com voz pausada e tranqüila, descreveu todo o quadro clínico, os remédios tomados e até os efeitos colaterais eventualmente atribuídos aos mesmos. Evidente que tudo constava da ficha médica e fora minuciosamente examinado antes da entrada do pobre coitado. E assim procedeu durante o resto do dia. Com aqueles que o visitavam pela primeira vez, deixava que contassem o motivo da ida até ali e caso fosse comentado alguma coisa sobre os remédios eventualmente receitados por outro médico, lá vinha a mesma cantilena dos efeitos colaterais que poderiam estar sentindo. Segundo seus cálculos, o índice de acerto chegou próximo aos oitenta e cinco por cento e, por isso, resolveu continuar com a brincadeira.
Teve de contratar mais uma recepcionista e em pouco tempo comprava novo conjunto de salas em bairro mais condizente com o padrão dos novos clientes que começaram a procurá-lo em grande número. Deixou de ser apenas o médico para se tornar um orientador, guru e até bruxo, já que continuava a medicar os que necessitavam de seus trabalhos. Aprendeu a ouvir mais e manter silêncio em momentos onde era esperado seu pronunciamento. Frases de efeito como: “ Dê tempo ao tempo e tudo ficará mais fácil de se resolver...” eram usadas e absorvidas pelos que o cercavam, como se fossem gotas de sabedoria.
Cada vez era mais procurado, porém não se sentia feliz. Passara a ser vítima da própria armadilha, porém ganhava muito dinheiro com isso. Seu novo apartamento de frente para o mar e decorado por nomes famosos, servia de abrigo para noites mal dormidas onde procurava uma solução que acabasse com aquela depressão. E ela não se fez esperar. Certa tarde recebeu a visita de um representante da Justiça, que lhe trazia a intimação onde havia denúncia de “exercício ilegal da medicina”. Compareceu à Delegacia Policial acompanhado por dois famosos advogados e ali provou ser médico registrado e apto a dar consultas e prescrever medicações.
Os jornais noticiaram o fato, o Conselho Regional de Medicina fez uma sessão em desagravo ao médico injuriosamente constrangido e... Os clientes desapareceram. Acabara o encanto. Afinal ser consultado por um médico qualquer um podia, mas a graça era em ter um bruxo como conselheiro e cujas receitas fossem consideradas “beberagens” por aquela pequena multidão de novos ricos...
Tinha se resolvido o problema que o acompanhava. É claro que as dadivosas fontes de renda secaram, mas o que ganhara permitia tocar a vida sem maiores preocupações. Foi assim que semanas mais tarde, vendia as suntuosas instalações do consultório e reabria o velho sobrado suburbano, onde, feliz, brincalhão e sem quaisquer “disfarces”, observou os antigos clientes voltando.
Se concluíra um ciclo de vida, não podia afirmar, mas não tinha mais qualquer sonho de grandeza que o levasse além daquilo para o qual se preparara por tantos anos. Ser Médico.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
O CAMELÔ
Contar sua vida foi o primeiro passo para integrá-lo, já que mostrava um nível cultural muito acima daqueles que, como ele, anunciavam e vendiam objetos e alimentos nas areias e proximidades da praia. Incentivado pelo silêncio dos que o escutavam, relatou sua história.
Certo dia, há mais de trinta anos, estava em sua mesa numa multinacional, quando percebeu o reflexo do sol nos vidros do prédio, no outro lado da rua. Tomado por uma angústia que nem ele próprio explicaria, pegou o paletó e saiu, sob os olhares interrogativos dos demais funcionários.
Causou curiosidade aos freqüentadores, aquele homem de gravata, calças arregaçadas, com o paletó e sapatos nas mãos, deixando a espuma salpicar as pernas, enquanto andava na praia. Sentou-se na areia e fixou o olhar no horizonte, onde uma linha tênue separava o céu do mar.
O quê fizera da vida até ali... Quais seus planos para o futuro... A resposta se resumia a uma palavra: NADA. A família, pai, mãe, irmãos, não passava de um amontoado de gente que mal se falava durante as refeições e desde que cada um colaborasse com as despesas no final do mês, nem era notado. Nada sabiam a respeito uns dos outros.
Aquela noite dormiu na praia e enquanto o dinheiro de sua carteira não acabou, alimentava-se nos botequins da região e se integrou a um grupo de vendedores das areias. Em pouco tempo fazendo uso de sua experiência, já liderava a turma e começou a sugerir modificações no “modus operandi” dos vendedores. Suas idéias foram bem-vindas e logo alugavam informalmente um depósito para guardar as mercadorias no fim do dia, acabando com os buracos feitos na areia, onde escondiam os materiais até a manhã seguinte; instituiu o uso de uniformes para poder diferenciá-los de outros camelôs que eventualmente “invadissem” a área e em menos de um ano, recebeu proposta para gerenciar um pequeno mercado, cujo proprietário observara suas atividades no “comando” daquele grupo, em princípio tão heterogêneo.
Dali para uma organização maior foi um pulo. Em alguns anos já ocupava posição de mais destaque que àquela abandonada quando funcionário da multinacional. Surpreendeu-se, um dia, com a vista sendo ofuscada pelo sol na vidraça da janela da enorme sala que ocupava. Voltara ao princípio, pensou, só que agora tinha mulher e filhos, sérios empecilhos para atitudes drásticas. A sensação de insatisfação o acompanhou pelos anos seguintes, até que os meninos, agora homens, tomassem seus próprios rumos e a mulher morresse.
Esse foi o momento da nova virada de mesa. Viu-se, novamente, à beira da mesma praia e do mesmo mar salpicando-lhe as pernas. Já não era mais aquele jovem, mas arrogava-se ao direito de tentar um recomeço.
Ali estava contando isso tudo, quando um dos meus companheiros de mesa perguntou-lhe se jamais tinha se arrependido. Com o mesmo sorriso aberto, respondeu:
- Vivi minha vida da forma mais intensa possível; tive meus momentos de luta e razões para participar dessas batalhas. A meu ver, alcancei tudo o que queria e prefiro me arrepender do que fiz, a chorar pela perda da chance de mergulhar numa interrogação.
Tomou um gole de chope e continuou:
- Dentro de meu conceito, superei todos os desafios, comprovando ter capacidade em reescrever minha história – danem-se os que me chamam de irresponsável - e se morrer amanhã, quero que escrevam na lápide apenas uma frase: “Aqui jaz alguém que viveu a vida.”
Levantou, despediu-se com a curvatura da cabeça e seguiu seu caminho. Afinal, tinha que vender seus amendoins para defender o prato de comida daquele dia. A nós coube um misto de frustração e admiração por aquele homem que embora indo contra as filosofias comportamentais imposta por uma sociedade, vivera sem contrariar seus ideais.
sexta-feira, 25 de julho de 2008
NOVA DIMENSÃO
Afirmam os entendidos que existem outras Dimensões em que a vida existe e corre paralela, acima ou abaixo dos nossos padrões, embora não possam ser vistas e ouvidas por nós, mas, apenas, por um grupo especialíssimos de seres humanos que nascem ou são treinados para participar de tal feito.
Assim, a nossa seria a Terceira Dimensão, onde temos noções - nem todos as tem - de altura, largura e profundidade. Até aí, nada de novo. O negócio é a Quarta. Dimensão, é claro, onde além das três noções que, em tese, absorvemos, teríamos a do TEMPO. Aí o bicho pega. Como será esse negócio de ter noção do tempo, diferente da que conhecemos? Os mais filosóficos afirmam que na Terceira Dimensão tudo acontece no hoje. O passado foi um hoje que se foi e o futuro não existe. Aquilo que você planeja hoje, hoje acontecerá. Tudo bem, e daí, como vai ser na Quarta?
Segundo tentaram me explicar os tais entendidos, o TEMPO não passa de um enorme cilindro cujas paredes estão em constante movimento, permitindo que os acontecimentos subam, ou desçam, numa velocidade tal que o acontecido agora, pode estar se repetindo no amanhã ou no ontem. Deu para entender? Aposto que não.O fato é a afirmativa de que nosso planeta está sendo transferido para esse novo degrau de evolução e a nós viventes que estivermos presentes quando tal evento acontecer, caberá ver e entender esse progresso. Com a correria da vida moderna, só tenho uma dúvida. Teremos TEMPO para perceber a novidade?
O GAROTÃO
André não era jovem, mas fazia questão de manter uma forma física invejada pelos da sua idade, graças a quilômetros percorridos em esteiras rolantes e pesadíssimos halteres levantados três vezes por semana, sob dedicada atenção de um preparador físico destinado unicamente para atendê-lo na academia e que lhe custava uma fortuna por mês. Além disso, havia a assessoria da nutricionista, do cardiologista e do clínico geral, provas incontestáveis de sua fixação pelo corpo perfeito.
Não que isso o impedisse de continuar dirigindo sua empresa bem sucedida. Gostava, entretanto, de observar os olhares das jovens funcionárias e cultivar uma rede de informantes que “captavam” notícias na chamada “rádio do corredor”. Ignorava as fofocas, mas dava especial atenção aos comentários elogiosos ao seu físico.
Incrível como possa parecer, não era dado a conquistas. Talvez, quem sabe, pelo perigo de eventuais insucessos sexuais comuns em sua idade e a aversão a tomar qualquer remédio que o ajudasse nesse sentido, mas que poria em dúvida sua aparente virilidade. Marido extremoso e pai atento satisfazia-se com os elogios e em cultivar algumas “paqueras” à distância.
Certa manhã chegou cabisbaixo ao escritório, o que foi notado pela secretária. Embora isso não fosse comum, em algumas outras ocasiões acontecera e aí, cumprindo instruções recebidas do Dr. Ribamar, misto de gerente jurídico e bajulador de plantão cujo relacionamento com o chefão equilibrava-se entre a amizade e um puxa-saquismo discreto, colocou-o a par do acontecido.
Ribamar colheu alguns documentos que justificariam sua ida à sala do chefe e para lá rumou. Encontrou André realmente abatido. Após os rodeios de praxe, perguntou se podia fazer algo pelo chefe/amigo. A resposta foi imediata. Como se desaguasse uma enorme frustração contou sua triste história:
Tinha acabado de tomar um café no bar da esquina, quando percebeu que três jovens com uniformes escolares olhavam e sorriam para ele. Evidente que eram quase meninas, mas não poderia deixar “passar em branco” uma “paquera”, mesmo que da forma mais descompromissada possível. Assim, sorriu incentivando a troca de olhares e duas delas fizeram-lhe um sinal perguntando se podiam falar-lhe. Claro que concordou e elas atravessaram a rua rindo muito e lhe disseram:
- Tio, sua braguilha está aberta.
Saíra dali se arrumando e ouvindo as gargalhadas das meninas às suas costas. Nem tanto pelo vexame da exposição indevida, mas abatidíssimo por ter sido chamado de “tio”, afirmação definitiva de que o acharam idoso demais para elas.
Pior que isso, só a internação em um asilo geriátrico...
quinta-feira, 17 de julho de 2008
UMA NOITE PARA FICAR NA HISTÓRIA
Estava sozinho. A mulher viajara para assistir à mãe doente em São Paulo e os filhos, já casados, moravam no outro lado da cidade. Não conseguia prestar atenção no programa que passava na televisão. Seus pensamentos voavam sem se deterem em nada. Surgiu a vontade de tomar uma cerveja. Na geladeira, sabia não haver nenhuma. Aliás, há tempos deixara de lado o hábito de bebê-las enquanto assistia o futebol, para evitar a implicância de Carmem com a molhação que fazia na pequena mesa de centro, onde sempre esquecia o copo. Sair nas sextas após o expediente, para encontrar amigos em um bar qualquer e bater o chamado “papo furado” esquecera, graças à cara fechada da mulher que insistia em querer acompanhá-lo.
Levantou-se e em poucos minutos trocara de roupa e trancava a porta da casa. Meio inseguro em princípio, resolveu escolher um lugar longe de onde morava. Sabia que sua presença por ali num boteco qualquer, daria motivos para fofocas durante semanas. O barzinho escolhido até que era simpático. Preferiu a mesa do canto, embaixo do toldo que ocupava metade da calçada e ficou por ali ouvindo a música tocada por um desses grupos que pulam de bar em bar nas calçadas da Zona Sul, em busca de uns trocados. As batatas fritas, companheiras fiéis dos chopinhos, estavam uma delícia e ali teria ficado quieto com seus pensamentos, não fosse alguém gritar alegremente:
- Batista, que bons ventos o trazem de volta à boemia!
Lá estava Nilton, seu velho companheiro dos tempos de solteiro, grande como sempre e com uma cintura bem mais larga daquela de épocas em que faziam musculação, ávidos por impressionar as meninas na praia. Com ele, mais três rostos não totalmente estranhos sorriam também. Sim, eram contemporâneos menos próximos, mas partícipes das amalucadas aventuras da juventude.
Migrou para a outra mesa e sentiu-se mais confortável, tendo com quem conversar. E como tinham assuntos a colocar em dia, meu Deus! Era o único ainda casado com a mesma mulher; todos já tinham netos, mas só ele renunciara aos encontros marcados a cada semana num bar diferente, sob o pretexto de acharem o melhor chope da cidade; continuava proibido entre eles, falar de (suas) mulheres ou problemas familiares. Era uma reunião para desopilar o fígado, diziam.
A noite passava rapidamente, até que em determinado momento surge um tumulto. O homem alto e atlético fora até o Caixa e com uma pistola em punho, pegara todo o dinheiro disponível. Alguns clientes sentados na parte interna do bar, começaram com a gritaria. O assaltante, nervoso, disparou em direção ao teto e aproveitando a confusão, correu na direção da saída. Nilton sem se levantar, esticou a perna fazendo o bandido tropeçar, cair e largar a arma. Somente Batista notou a presença do cúmplice na calçada, posicionando-se para defender o companheiro. Encorajado pelos muitos chopes bebidos, fingiu correr da baderna em direção à rua, deu a volta e pegou o homem pelas costas, numa gravata que, nos velhos tempos, jamais alguém se livraria. O sujeito praticamente ignorou o famoso golpe, mas conseguiu evitar que sacasse a arma e rolou agarrado a ele pelo chão. Só então chamou a atenção dos companheiros que mesmo não entendendo o motivo da “briga paralela” imobilizaram o sujeito e, aí, souberam de quem se tratava.
A polícia chegou em poucos minutos e as palmas e aclamações dos frequentadores do bar, não livraram os heróis - Batista, Nilton e os demais companheiros - de darem com os costados na Delegacia, onde repórteres de plantão se encarregaram da publicidade do fato.
Na manhã seguinte foi acordado por um dos filhos, assustado com a notícia de primeira página, onde a foto do pai e seus amigos era destaque; a mulher voltou imediatamente de São Paulo, sob o velho pretexto de: “Não posso deixar o Batista sozinho um dia que ele desanda a fazer besteiras.” Só não contava encontrá-lo com o corpo doído, algumas escoriações, mas feliz com a reverência dos vizinhos:
- Eu sempre achei o Seu Batista com um jeito de homem que resolve... Dizia Dona Olinda.
- É bom saber que a gente tem alguém desse quilate por perto... Falava o Seu Nelson, velhinho simpático do quatrocentos e três.
Carmem desistiu da bronca ensaiada desde que saíra de São Paulo, principalmente por sentir que tudo aquilo fizera um bem enorme ao velho companheiro, cujo olhar voltara a brilhar como antigamente.
No final da outra semana, comunicou abrir mão das exigências que impediam Batista de encontrar com os amigos e não aceitou o convite para ir na reunião seguinte, como convidada de honra, por saber que dificilmente agüentaria uma noite inteira de bravatas, contadas pelos, agora, heróis dos bares cariocas.
Tudo, menos isso. Afinal, sua paciência tinha limites.
sábado, 5 de julho de 2008
SONHOS DE VIDA
Tenho certeza de que estou nesta vida para colher meus sonhos.
Chega de tristezas, dramas e amarguras. Quero mais dias de sol, mais sorrisos, mais olhos brilhando; chega de notícias más de enfrentamentos inglórios, de balas perdidas.
Quero de volta os planos bem urdidos e nunca colocados em prática; quero as mãos de uma criança procurando apoio e sua tranqüilidade ao alcançar o colo amigo; preciso voltar a fazer rir os à minha volta e não me deixar esquecer pelas lições dadas aos menos experientes durante a passagem nos caminhos trilhados.
Jamais farei da vida uma poesia, mas posso ajudar a torná-la mais leve aos que carregam cruzes pesadas demais. Quem sabe uma palavra, um incentivo na hora certa, não pode mudar destinos? Quem sabe se não estou aqui para, pelo menos, mostrar aos que se iniciam a maneira pela qual jamais deverão se pautar?
Não me importa desde que, com isso, esteja colhendo meus sonhos e dando como encerrada uma missão imposta antes de chegar neste planeta.
Se as lembranças deixadas forem as do eco de uma gargalhada, de um gesto amistoso, de um carinho na hora certa, estarei satisfeito. Certamente meus sonhos terão sido realizados.
terça-feira, 1 de julho de 2008
O MARGINAL
Zebu. Apelido que ganhou logo depois de chegar ao Rio de Janeiro, ainda menor de idade, e conseguir trabalho puxando um longo carro de duas rodas, carregando mercadorias entre os trapiches e os depósitos dos grandes atacadistas da Rua do Acre. Morou num pequeno quarto que lhe foi cedido pelo dono de um bar na Praça Mauá, em troca da limpeza do “estabelecimento”, quando fechavam suas portas.
Ao servir o Exército, mudou-se para os alojamentos do Quartel, que eram um luxo se comparados ao tal quarto sem janelas ou ventilação. Participava do time dos “percevejos”, apelido dado aos soldados que, sem opção, moravam nos quartéis.
Ali, além de concluir o curso primário, aprendeu a dirigir, principalmente enormes caminhões, transportando tropas ou pesados equipamentos bélicos. Graças a isso ao dar baixa, foi imediatamente contratado por uma empresa transportadora, indicado por um major que gostava dele.
Viajou muito e, por isso, dormia na sede da empresa quando estava no Rio ou no caminhão, durante as viagens. Por algumas vezes pode dar uma desviada e passar pela casa dos pais, num lugarejo na Paraíba. Em relação ao que tinha recebido até então, o salário era muito bom. Sem despesas de moradia ou alimentação, conseguiu juntar um bom dinheiro. Foram anos de economia até o dia em que comprou a casa, a última da rua, e cujo quintal era invadido pela vegetação do morro, logo ali atrás.
Mais algum tempo e estava tudo arrumadinho, com móveis de segunda mão e limpeza feita por Marlene, a namoradinha que trabalhava como doméstica na casa de Dona Vera, patroa bondosa e que ajudava aquela mulatinha bonita no que podia. Foi quando largou a transportadora e passou dirigir ônibus urbanos.
Logo trouxe os pais, Severino e Francisca, da Paraíba e se juntou com Marlene. Depois de tantos anos, tinha novamente uma família. Era com felicidade que subia a íngreme ladeira todas as noite, após mais uma jornada diária, dirigindo sob o calor intenso da cidade.
Seu Severino ainda estava forte e saudável. Após capinar todo o quintal e ali fazer canteiros de onde colhia algumas verduras, resolveu tentar arranjar um emprego que lhe permitisse ajudar o filho com as despesas da família. Bateu em muitas portas, mas a falta de instrução e a idade, acabaram por fazer com que aceitasse trabalhar na escrituração do jogo-do-bicho, na banca da esquina. Zebu nem tomou conhecimento do fato, mas numa noite ao voltar para casa, encontrou a família sobressaltada. Severino tinha sido preso e até àquela hora, não havia qualquer sinal dele. Imediatamente correu para a Delegacia do bairro. Como já esperava, foi mal recebido e com muito custo e humildade, conseguiu liberar o pai. Com o quê não contava, era o estado físico de Severino. Apanhara muito. O rosto inchado, um olho que mal abria e a camisa suja de sangue, revoltaram o filho:
- Gente, por que uma coisa dessas? Um sujeito velho e quase analfabeto e vocês fazem isso...
Os policiais tentaram intimidá-lo:
- É isso mesmo, cara. Se não quiser levar ele embora, joga no lixo... Tem uma lata aí pertinho de você.
Zebu explodiu:
- Ta certo. Só quero saber se o dono do ponto de bicho foi preso. Nesse vocês não botam a mão. Afinal é quem garante o dinheirinho extra que ganham...
A resposta foi um soco, jogando-o ao chão. Os chutes que se seguiram doeram menos que os gritos impotentes de Severino tentando ajudá-lo.
Foi recolhido ao xadrez quase inconsciente, provocando pena entre os outros detentos. Só o liberaram na manhã seguinte e, mesmo assim, sob ameaças caso voltasse a aparecer ali. Zebu mal podia andar e não fosse a ajuda de um vizinho taxista, jamais teria conseguido chegar até sua casa. Passou uma semana sob os cuidados de Marlene e da mãe. Assim que pode voltar a andar, subiu o morro atrás da casa e em cujo outro lado, sabia, havia uma favela mal afamada, que tinha saída para outro bairro. Foi lá que comprou um revólver trinta e oito e as caixas de munição.
Dali seguiu para a Delegacia aonde chegou por volta da hora do almoço e ficou do outro lado da rua, aguardando. O policial que o agredira saiu para almoçar. O tiro atingiu seu peito, jogando-o para trás. Outros policiais atraídos pelo disparo, surgiram na porta da Delegacia, entre eles aquele que debochara dele e do pai. Um tiro certeiro acertou sua testa, antes mesmo de seus colegas atinassem para o que estava acontecendo.
Voltaram todos pra o interior do prédio, enquanto Zebu, misturado na multidão em pânico, entrou num bar e, para sua surpresa foi imediatamente reconhecido pelo homem aterrorizado atrás do balcão:
- Por favor, não me mate! Pode levar tudo, mas deixe a gente em paz...
Falava e retirava da caixa registradora uma grande quantidade de notas. Zebu, num gesto automático, recolheu o dinheiro amassando-o com uma das mãos e colocando-o no bolso da calça. Nada falou. Saiu e novamente se misturou com o povo, enquanto ouvia alguns tiros dados a esmo pelos policiais atocaiados por trás das portas e janelas da Delegacia.
Não poderia voltar para casa. Os homens mortos seriam ligados rapidamente à violência de dias atrás e assim como o dono do bar, certamente outras pessoas fariam sua descrição para a polícia. Entrou num ônibus e em menos de uma hora subia o morro onde comprara o revólver.
Sem maiores dificuldades, encontrou os marginais que dominavam a região e contou sua história. Tirou o dinheiro amassado do bolso, entregando-o aos bandidos, como se estivesse pagando por proteção. Um deles, atarracado e com a barba por fazer, contou o dinheiro e após dirigir-lhe um olhar sério, falou:
- Homi, até que a grana não é das piores, mas aqui você não pode ficar. Tu mora do outro lado do morro e a polícia logo estará fuçando por essas bandas.
Com um gesto evitou que Zebu o interrompesse e continuou:
- Vamo fazer o seguinte, to te transferindo lá prum morro nos lados da Penha, até a coisa esfriar. Depois tu pode voltar e ficar com gente.
Duas horas mais tarde, Zebu estava protegido, sob as tábuas de um barraco, no alto do tal morro cujo nome sequer sabia.
Os jornais do dia seguinte gritavam em manchetes:
“Marginal comete roubo e mata policiais”
A história fora invertida. Diziam que teria assaltado o bar e flagrado pelos “homens da lei”, os matara covardemente. Se por um lado a mentira o revoltava, por outro passou a ser tratado com respeito por seus anfitriões. Não estava ali um ladrãozinho qualquer, mas um matador de primeira que, com dois tiros, acabara com a raça de dois “gorilas”.
Contaram-lhe que sua casa havia sido cercada, mas que trataram seus familiares com respeito, até porque a ação teve cobertura total da imprensa, faminta de notícias.
Em uma semana já andava pelas vielas do morro e em mais alguns dias se dava ao direito de circular nas ruas do bairro, envolvido no que pensava ser um anonimato seguro. Eis que, de um momento para outro, notou-se cercado por quatro homens ”suspeitos”. Não hesitou em sacar o revólver e, correndo entre os transeuntes, abate-los com uma agilidade surpreendente. Em passos apressados, voltou para a favela que o protegia.
A notícia chegou à sua frente e lá estava um carro de praça que o levou na direção do morro de São Carlos, sua nova e temporária residência. Nessas alturas Zebu era considerado o inimigo público número um. A polícia entrou em prontidão e os alcagüetes acionados na procura de Raimundo de Souza o Zebu, facínora em cujo prontuário havia o registro do assassinato de seis policiais e evidente participação em diversos atos de violência em bairros da periferia, por onde ele jamais sonhara ter passado.
Era a velha estratégia. Se existiam casos de difícil solução, por que não atribuir suas autorias a um marginal em evidência? Ficava bem mais fácil concluir assim os inquéritos.
Enquanto isso, no Morro de São Carlos, aquele paraibano que ainda se sentia o menino que se aventurou a vir para o Sul atrás de uma vida melhor, sentia um aperto no peito, pois sabia não haver volta no mundo em que tinha entrado. Doeu-lhe, ainda, quando vieram avisar que Marlene estava grávida. Sabia que os donos do morro não estavam deixando faltar nada a seus familiares – afinal tinham a certeza de que Zebu, com o tempo, poderia trazer-lhe ganhos muito maiores – mas existia algo cujo valor não era coberto por dinheiro. O amor, o carinho dispensado aos seus, o respeito que granjeara por onde passou.
Se era um bom atirador, agradecia ao mesmo Exército que lhe dera condições de aprender a dirigir e chegar a ser o motorista que comprou sua casa e constituiu família com os ganhos da profissão. Agora, metido até o pescoço naquela confusão toda, conquistava uma posição também de respeito, num mundo que não era o seu.
Sabia que se resolvesse se entregar à polícia, ia passar por muitas dificuldades. Todos conheciam os métodos que utilizavam para matadores de policiais. Talvez se arranjasse um bom dinheiro, poderia fugir para o interior e ficar por lá um ano ou dois... Mas seus protetores se recusavam a incluí-lo nos assaltos, já que pretendiam utiliza-lo em coisas muito mais lucrativas, se conseguissem mantê-lo vivo.
Mas a polícia não pretendia esquecer do atrevimento daquele homicida. Conferia cada informação recebida e invadia as comunidades onde pudesse haver alguma chance de encontrar Zebu. Era uma questão de tempo e paciência.
E foi assim que, quando menos se esperava, cercaram o morro e começaram a revistar casa por casa. Os chefões imediatamente empreenderam fuga através de caminhos previamente preparados e estranharam quando não viram Zebu entre eles. O caboclo, com arma na mão apontada para o solo, descia o morro na direção dos homens fortemente armados. Tinha a certeza de que achara um meio de acabar com todos aqueles problemas. Chegou a passar por alguns que dirigiam suas atenções para um grupo de barracos, segundo eles, suspeitos.
O reconhecimento se deu logo depois e as armas foram disparadas de todos os lados. Zebu caiu vagarosamente, enquanto os projéteis atravessavam seu corpo. Logo a gritaria cessou e um detetive abaixou-se, como se conversasse com o corpo imóvel.
As rádios e os jornais destacaram a morte do facínora e os policiais envolvidos na “captura”, festejaram num bar próximo da Delegacia, o êxito da operação. Lá para as tantas, o detetive aproximou-se do Delegado e falou:
- Sabe, Doutor, só não entendi um coisa...
-O quê?
- Quando cheguei perto do corpo dele, notei que balbuciava alguma coisa. Aí eu me abaixei e cheguei o ouvido perto da boca do cara.
- E ouviu um palavrão?
- Não Senhor... Aí é que está... Ele disse pra mim um
Muito Obrigado.
segunda-feira, 23 de junho de 2008
UMA HISTÓRIA ANTIGA
Nunca foi um homem ambicioso. Para falar a verdade, afora os sonhos naturais da infância, jamais se preocupou com o que seria no futuro. Engenheiro, Advogado, Médico, Professor... O pai fora um honesto trabalhador da indústria privada e que respirou aliviado, certamente, quando ele resolveu parar com os estudos. Não que o velho tivesse dito algo, mas ter um a menos para alimentar certamente melhorou seu orçamento familiar. Leitor compulsivo, escrevia bem malgrado a instrução limitada e acabou conseguindo um bom emprego, que dava para viver sem maiores problemas. Quase vinte anos mais tarde, incentivado por amigos, fez o supletivo e de posse do certificado de conclusão do ensino médio, resolveu tentar uma faculdade qualquer. Direito. Era a mais próxima da sua casa e foi para lá que se dirigiu. Até que foi aprovado com certa distinção para quem não se preparou de forma adequada - dinheiro para cursinhos, nem pensar - e, rapidamente, começou a ascender profissionalmente. Chefe de Setor, de Departamento e, finalmente ao receber o diploma de "doutor", Gerente.
Casou-se três vezes, o que complicou um pouco as finanças, já que em todos teve filhos e os mantinha condignamente. Conheci-o quando, juntos, freqüentamos os bancos da faculdade, e nos tornamos amigos, coisa rara para ele que os contava nos dedos. A partir daí vi-me inserido em algumas de suas histórias de vida, nem sempre tão agradáveis de saber. De qualquer forma, fiquei conhecendo seus (dois) amigos, mulher e filhos.
Foi com surpresa que recebi um telefonema informando que se suicidara. Os três amigos se encontraram no IML e receberam juntos o bilhete que encontraram em seu bolso. Não era um recado para os que ficaram, mas somente um pequeno poema que, para nós, foi muito mais que a justificativa para seu ato desesperado:
"Nada que eu fiz deixou saudades,
nada que plantei frutificou
nada que eu fui virou história,
nada que amei também me amou.
Insólito pela própria natureza,
verdadeiro intróito à incerteza,
no livro da vida sou um nada.
Passei por ela com a impressão
de ter sido um equívoco
e minha missão,
suspensa antes de ser iniciada."
Não mostramos o papel com a escrita de quem certamente estava sobre grande emoção, para a mulher e os filhos. De comum acordo, fiquei de posse daquele tosco poema por muitos anos e só hoje, ao tentar organizar meus documentos, reclamação eterna de minha mulher, reencontrei o papel dobrado em quatro, num envelope cuja palavra "Diversos" constava do lado de fora. Tive vontade de transferi-lo à família ou, quem sabe, para mandar gravá-lo em sua lápide, mas, pensando melhor, certamente seria reviver emoções já acomodadas em suas mentes. Mudei o papel para uma pasta com o título de "Documentos Importantes". Talvez última homenagem ao velho companheiro.
quarta-feira, 18 de junho de 2008
HERÓI SEM QUERER
A mulher contorcia-se em espasmos e gritava de dor. O parto estava em franco andamento e só ele poderia ajudá-la. Nem em filmes prestava atenção a essas histórias e, exceto pela água quente e pano limpo, cuja necessidade ecoava em sua mente, mas que jamais saberia onde e como usar, ajoelhou-se na frente da mulher que, deitada no chão da tapera onde morava no meio daquele matagal, postou-se numa posição que, em outro momento e situação, teria lhe dado um enorme prazer. Pediu a Deus para ajudá-lo.
Não queria, mas só pensava no por que parara o carro atendendo ao aceno da menina que agora olhava assustada para a mãe deitada e para ele, como se perguntasse o que estava acontecendo ali.
Em poucos minutos rompia a cabeça cabeluda de uma criaturinha morena e que logo foi totalmente expulsa do corpo da mãe e não se fazendo de rogada, explodiu num choro que parecia informar estar dispensando os tapas usuais na ocasião.
A própria mãe instruiu quanto ao cordão umbilical e pronto, ali estava uma outra menininha que, minutos mais tarde, sugava o seio da jovem senhora.
Só aí o telefone conseguiu funcionar e em quinze minutos os homens da ambulância do Corpo de Bombeiros chegavam até ele. Foi cumprimentado pelo médico da equipe e elogiado por ter se portado com a frieza que só Deus sabe como manteve.
Saiu dali e rumou direto para casa. Deixou o carro mal estacionado e subiu os cinco lances pela escada, dispensando o elevador, abriu a porta e foi recebido pela mulher assustada, olhando para ele. Não agüentando o nervosismo, falou com um sorriso forçado:
- Não imagina o que acabei de fazer...
Ela, com uma das mãos sobre o peito e a outra tapando a boca, respondeu com a voz tremida:
- Esse sangue na sua roupa... Oswaldo, pensei que não teria coragem... Você matou o gato da vizinha!
domingo, 15 de junho de 2008
O MENDIGO
Era alto e magro. Vestia um costume cujo paletó, bem cortado, evidenciava ter sido feito por mãos hábeis e caras. Não fosse a ausência da camisa e dos sapatos, poderia ser tomado como um homem de posses.
Com presumíveis trinta e cinco/quarenta anos, surgiu da noite para o dia naquela esquina, onde se postava de pé, sempre obedecendo a uma reta imaginária do tronco da árvore da qual ficava afastado cerca de dois metros. O olhar perdia-se num horizonte muito além das casas do outro lado da rua. Semblante tristonho, só esboçava um sorriso quando o proprietário do armazém, português baixinho e atarracado, passava por ele e brincava:
- Tens que arranjar uma hora para descansar, rapaz. Do jeito que te moves, vais morrer de cansaço...
Sua voz ninguém ouvia. Mesmo quando Dona Mariana, senhora bondosa, lhe dava o prato de comida diário (“coitado, tem idade para ser meu filho...”) fazia um arremedo de sorriso e olhava para ela agradecido.
Algumas velhinhas atravessavam a rua para não cruzarem com o mendigo, temerosas de um ataque que, segundo alguns debochados, enchiam seus sonhos com alegrias eróticas de há muito perdidas. As crianças, presença constante com bicicletas, patinetes e bolas, ignoravam o ser estático, que lhes retribuía a ausência de interesse.
À noite, desaparecia. Alguns diziam tê-lo visto entre as pedras do morro existente no final da rua, enquanto outros afirmavam que se abrigava num túnel, saída da estação da linha férrea, a cento e cinqüenta metros dali. O que se sabia, com certeza, era sua presença no lugar de sempre, todas as manhãs, enquanto os chefes de família saíam para o trabalho. Como não fazia mal a ninguém, o policial morador numa casa na parte alta da rua, foi convencido deixa-lo em paz.
- “O tempo tudo resolve”, dizia Dona Georgina . “Um dia, quem sabe, a gente vai poder fazer alguma coisa por ele”, concluía.
Meses se passaram e o homem já se confundia com a paisagem da rua. Só a sujeira dos seus trajes, os cabelos emaranhados e a barba grande, evidenciavam a longa permanência por ali. Certo dia, um grupo de animados ginasianos parou a certa distância dele, para conferir respostas dadas numa prova de História, da qual acabava de sair. O assunto girava em torno do Império Romano e para surpresa dos rapazes, ouviu-se uma voz clara, sonora e pausada, dissertando:
- Roma. Ao que dizem as lendas, fundada por Rômulo e Remo, irmãos gêmeos que quando crianças, teriam sido alimentados por uma loba (...) Os sete primeiros imperadores romanos foram importantes não só no desenvolvimento daquela cidade-estado, mas também na conscientização do povo para a unicidade exigida no estabelecimento do conceito, do sentimento de nação (...) A importância de Júlio Cezar no aumento da área sob jugo romano...
O mendigo caminhava de um lado para outro, como se desse uma aula para aqueles alunos surpresos. Todas as questões da prova foram respondidas sem que, em momento algum, olhasse na direção dos jovens. A partir daquele momento, ganhou um apelido: “Mestre”.
- Como vai Mestre, tudo bem?
Pergunta respondida sempre com o enigmático sorriso. A partir dali, tornou-se referência para estudantes com dúvidas. Respondia a todos os questionamentos sempre com o olhar dirigido para uma classe de aula inexistente. Vez por outra, com o bom humor inconseqüente dos rapazes, reagia com severidade:
- “Cara”, dizia um, “traduzi a frase Le lion c´est le roi des animaux, como: O leão de tanto hurrar desanimou”.
- Oh plebe ignara! O leão é o rei dos animais... Preste mais atenção ao que lê e fala!
A garotada se divertia a cada reação do mendigo. Até Dona Déia, católica fervorosa, foi ler em voz alta trechos da Bíblia, recebendo como resposta imediata, gentil e atenciosa, mas sem dispensar o olhar perdido, a seguinte recomendação:
- Não atentai somente ao que ledes! Procurai respostas também nos apócrifos, ignorados no Novo Testamento por não convirem aos que o organizaram.
Dona Déia foi procura saber o significado daquilo tudo e, assim, tomou conhecimento dos tais livros apócrifos.
Não havia mais dúvidas. O “Mestre” era dono de cultura invulgar e grande demais para alguém numa situação de miserabilidade daquelas. Havia de se fazer algo para identificá-lo, achar parentes ou responsáveis por ele. Dessa vez foram os moradores que procuraram por Wilson, o policial. Explicaram os últimos acontecimentos, aguçando sua curiosidade.
Alguns dia mais tarde, já quase noite, um belíssimo carro parou próximo do “Mestre” e dele saíram o motorista e um senhor de cabelos grisalhos, recebidos pelo costumeiro sorriso. Não reagiu e foi colocado gentilmente no banco traseiro do carrão, que imediatamente se deslocou no sentido sul da cidade. A explicação só foi trazida mais tarde, quando Wilson voltou do plantão na delegacia:
- O homem é um ricaço que ficou assim após perder a mulher e os filhos num acidente... Era um médico respeitadíssimo, apesar da pouca idade, e até livros já tinha escrito...
Ali acabava a curiosidade da vizinhança, enquanto aquele ser continuava escondido sob uma parede psíquica, protegendo-se das recordações que se tornaram a tragédia da sua vida.
sexta-feira, 13 de junho de 2008
OS QUATRO AMIGOS
Eram quatro amigos. Desde os tempos de colégio primário. Foram crescendo juntos e, jovens, freqüentaram o mesmo clube onde além dos esportes usuais, dançavam nos bailes dos fins de semana.
Namorando, armavam programas em que pudessem participar juntos e assim foram até o vestibular, onde um cursou Engenharia, outro Administração, o terceiro Economia e, o último, Direito. Só aí seguiram caminhos diferentes e por mais que tenham tentado, os compromissos naturais foram afastando os quatro.
O que cursou Engenharia, depois de formado conseguiu uma bolsa e foi fazer doutorado na Alemanha e por lá ficou; o economista passou num concurso público e se transferiu para Brasília; o administrador após belo MBA, assumiu funções de destaque numa famosa indústria, enquanto o advogado nunca exerceu a profissão, já que ia muito bem, obrigado, na empresa de bebidas, seu primeiro e único emprego na vida.
Todos casaram, o advogado duas vezes, e a vida continuou até saberem da morte do engenheiro, cujo corpo retornava para o Rio, onde seria enterrado. Foi a primeira oportunidade de um encontro efetivo. Nenhum deles foi ao velório acompanhado de suas mulheres, o que facilitou a “esticada” até a zona sul, onde voltaram ao mesmo bar de tantos anos atrás. Nem a morte do amigo conseguiu conter a alegria daquele momento. Um primeiro chope e a mesma discussão sobre o sabor da pizza a ser pedida que, afinal, vinha sempre dividida em quatro sabores. Mesmo não gostando da Marguerita, lá estava o pedaço predileto do amigo que se fora.
Cada um contou sua história, os filhos nascidos, o sucesso em suas atividades. Menos o advogado, não satisfeito profissionalmente, não feliz nos dois casamentos e com uma lista de problemas com os filhos, que poderiam encher mil guardanapos do bar, se ali resolvesse escrevê-los.
Nem por isso ficaram menos felizes. A tarde já caía quando num pileque daqueles, onde – sempre – o economista tinha que ser amparado, passaram por uma casa lotérica e resolveram participar do concurso acumulado em muitos milhões e, apenas pela farra, jogaram todos os mesmos números.
No dia seguinte a surpresa do prêmio ganho. Foram juntos resgatar a fortuna e, de comum acordo e devidamente orientados pelo economista, resolveram fazer os mesmos investimentos e só tirarem o suficiente para uma vida mais confortável, coisa que variava sob a visão e necessidades de cada um.
O advogado comprou o apartamento dos sonhos, de frente para o mar do Leblon; o administrador investiu nas indústrias das quais, nessas alturas, era sócio e o economista foi fazer uma longa viagem pelo mundo.
Mais tempo se passou e foi a vez do administrador se ir. Novo encontro, novo pileque e a dificuldade do advogado em “transportar” sozinho o economista, nessas alturas com muitos quilos a mais e que o fizeram ser o próximo a ir embora. O sobrevivente da turma depois do enterro, não deixou de ir tomar um chope e comer a pizza, mas tudo ficara sem graça. Nem o bom dinheiro que não faltava mais, nem os problemas familiares que se amenizaram, faziam-no mais feliz. Morreu cinco anos depois.
Num velório pouco concorrido, a viúva foi abordada por uma parenta que se dizia vidente e perguntava a respeito de quem seriam os “três espíritos” junto ao caixão e que vez por outra davam uma olhada no morto e conversando entre eles, pareciam estar rindo.
A amizade continuava...
quinta-feira, 12 de junho de 2008
O DIRETOR
Estendeu os braços, espreguiçando-se longamente. Pela janela, via o verde predominante no grande jardim que separava a casa da rua movimentada e cuja entrada era eternamente guardada por enormes seguranças, que lembravam aqueles “homens-armários” vistos nos filmes americanos.
O dia seria longo, sabia, mesmo assim seus gestos eram vagarosos, lembrando um gato ao acordar e cujos movimentos são quase em câmera lenta, até sentir a musculatura aquecida e pronta para saltos incríveis, que só eles sabem dar.
Após o banho, colocou o elegante terno e se encaminhou para a sala, no andar inferior, onde substancial desjejum o aguardava. Não gostava daquilo. Preferia o dos velhos tempos em que ele próprio ia até a geladeira, fazia o sanduíche que comia acompanhado de um suco qualquer. A riqueza trouxe-lhe mordomo, empregados, motoristas.
Por mais que o tempo passasse, não se sentia confortável com os “rapapés” dos que o cercavam. Isso tudo o sufocava e seria motivo de um longo papo com seu analista, logo que pudesse.
Na reunião daquela manhã, divertiu-se com o jovem garçom recém-admitido, visivelmente atrapalhado no uso da bandeja, xícaras e afins. Quase dera um banho no Diretor Administrativo que só não se enfureceu em razão do olhar complacente do seu superior, ele, é claro. Não iria tomar qualquer medida que prejudicasse o rapaz. Certo dia passara por situação semelhante, que só com a prática adquirida e o tempo, fizeram-no o exímio profissional de hoje.
E lá se foi a reunião, iniciou-se outra e depois telefonemas, exame de documentos, recepção a visitantes importantes... Não que estivesse exausto no fim do dia, mas saturado daquela vida que levava entre as paredes da fábrica e, até mesmo, da própria casa.
O carro negro, com vidros idem, esperava por ele, como sempre. Diferente dos outros dias parou e olhou ao seu redor. Lá na frente, quase no portão de saída da indústria, ia o garçom daquela manhã que, encerrado o expediente, certamente voltava para casa.
Para surpresa do motorista, dispensou-o assumindo o volante e, sem pressa, fez o mesmo trajeto do novo funcionário, até que esse se afastasse o suficiente da fábrica.
Evidente que o rapaz arregalou os olhos ao ver o chefão mandando que sentasse ao seu lado naquele carrão. Mesmo sem jeito, ocupou o lugar do carona e sorriu amarelo, quando lhe foi perguntado para onde ia. Morava longe, num subúrbio esquecido e se surpreendeu quando o chefe pediu que lhe ensinasse o caminho.
Viagem longa, trânsito complicado, o que permitiu relaxar e responder às perguntas do homem, que não parecia tão bravo como diziam por lá.
Acabaram parando em um botequim qualquer, onde a rapaziada ensaiava um daqueles pagodes usuais nos fins de tarde de sexta-feira. Beberam, cantaram, falaram de mulheres e de futebol. Discutiram aquela jogada decisiva do domingo passado e já eram altas as horas em que foi deixado na porta de casa, lamentando que os vizinhos não estivessem vendo sua chegada no Mercedes negro.
Contou a história para seus familiares. Sua mãe recomendou-lhe maiores cuidados com o chefe na segunda-feira; o irmão desconfiou que o cara fosse bicha e o pai, simplesmente, nada disse.
Chegou o dia da volta. Ressabiado e sem conversar com nenhum colega a respeito da aventura vivida, retornou às bandejas, cafeteiras, xícaras. O garçom da Diretoria, que faltara na sexta, voltara ao serviço e sua oportunidade de rever o chefe, remota. Melhor assim, pensou, o cara não me vendo, pode até esquecer daquela “zona” que armamos três dias atrás.
Pelo quê não esperava, era a convocação do Departamento de Recursos Humanos. Chegou lá
Não sabia, entretanto, do bem que fizera a um sujeito sério e caladão naquela noite. Escolhido ao acaso, conseguiu remetê-lo aos velhos tempos em que podia se dar ao direito de cantar sambinhas num bar, tomar “todas” e voltar para casa com o sol nascendo, meio de pilequinho, mas com a alma leve.
Não sabia o fim-de-semana alegre que proporcionara a uma família surpreendida pelas mudanças de temperamento de um homem cujas exigências do dia-a-dia tinham feito esquecer da existência da vida simples, agora lembrada, muito mais feliz que a dele.
quarta-feira, 11 de junho de 2008
A REZADEIRA
Era uma figura frágil. Da janela de sua casa humilde, deixava o olhar se perder nos morros que impediam um horizonte longínquo. O marido, visivelmente mais jovem, um bêbado inveterado que nada fazia para colocar centavos que fossem, na manutenção do casal. Pelo contrário, saíam dela as despesas com as cachaçadas diárias.
Lavava e passava para quem pudesse pagar e seu trabalho bem feito, sem uma ruga nos tecidos e doses certas de goma nos colarinhos das camisas masculinas.
A casa, quase um barraco, era limpa e nas prateleiras da cozinha, os poucos alimentos guardados em latas bem conservadas e os chamados panos de mão, alvos e com aplicações feitas à mão, trocados quase todos os dias.
Quando o marido se foi dessa para uma melhor, após uma bebedeira daquelas, e pelo qual colocou luto fechado por um ano, já era conhecida como respeitável rezadeira, com fama que atravessava as fronteiras do município.
Não era fácil controlar o número de pessoas que a procuravam, já que não admitia deixar de atender seus, digamos, clientes, sem provocar desconfortáveis encontros entre um e outro enquanto trabalhava.
Nada aceitava em troca de suas rezas. Nada. Afirmava sempre que um dom recebido de Deus não podia ser cobrado. A realidade é que sua fama aumentava, graças às curas proclamadas pelos portadores de diferentes mazelas.
Diziam as línguas ferinas, que chegou a ser investigada pelos médicos interessados em processá-la por exercício ilegal da profissão. Mas como acusá-la por rezar? Nunca receitara sequer um chá de ervas e seus materiais de trabalho não passavam de robustos ramos de arruda, água e carvão, este um verdadeiro “termômetro”, já que de acordo com a gravidade do “peso” trazido pelos clientes, descia ou subia no copo de água e dava a ela a dimensão de como sacudir a arruda sobre o corpo do doente. Ah, sim, durante as sessões, murmurava preces ditas de forma ininteligível, por mais atentos fossem os ouvidos que a cercavam.
Tranqüila, olhos bons e fala doce, conquistava a todos e chegada a velhice, uma boa alma alojou-a em outra casa, mais nova e menor que a anterior, economizando-lhe as forças e o dinheiro do aluguel, pago pela vida inteira. Perdeu a vista dos morros verdes, mas ganhou um pequeno quintal, onde as flores a entretinham. Talvez a mesma pessoa tenha lhe garantido a comida quando deixou de trabalhar, mas nunca falou a respeito, talvez até proibida por seu benfeitor.
Quanto às rezas, continuaram pelos tempos, para desespero do padre local que ao tentar proibir sua permanência durante as missas, recebeu ordens expressas do bispo para não mexer com ela. Mais uma vez aquelas línguas já citadas, veicularam ter o senhor bispo uma parenta curada pela velhinha...
Numa manhã fria, não abriu suas janelas e foi encontrada sobre a cama, toda arrumada como se estivesse preparada para passear, com uma flor nas mãos. Certamente previra o fim se aproximando e mesmo na morte, procurou evitar dar trabalho para os outros.
Enterrada com pompas reservadas para autoridades e afins, fez rir aos que conhecendo a história, assistiram o tal padre encomendando sua alma, talvez aliviado pelo fim da concorrência.
Suas proezas tornaram-se quase uma lenda e o túmulo onde foi enterrada, marcado apenas por uma pesada pedra, está sempre coberto de flores talvez trazidas pelos que se beneficiaram por suas rezas ou, quem sabe, de algum dos milagres que lhe são atribuídos em conversas à baixa voz pelas velhinhas da cidade. Não posso deixar de imaginar sua “descoberta” pelo Vaticano e a cara do velho padreco, fazendo simpáticas orações para não ficar mal com a nova santa.
HOMEM + NATUREZA = VIDA
Nada acontece por acaso, dizem os estudiosos dos mistérios desse Universo que nos cerca. Do nascimento de uma flor às marcas deixadas por um animal na estrada de terra, tudo está ali porque tinha de estar. Há, entretanto, os que duvidam dessa filosofia fatalista, até por uma outra regra, a do livre-arbítrio, através da qual podemos alterar nossos caminhos de um momento para o outro, desarranja tudo o que estava previsto, ocasionando mudanças no que deveria ser imutável.
Segundo teoria hinduísta, existem “ene” caminhos traçados e paralelos. No momento em que exercemos os direitos de mudança, apenas passamos de um para outro, continuando a obedecer ao que “estava escrito”.
Se pararmos para observar, a ordem que coordena todo o movimento dos astros faz-nos acreditar na presença de uma força maior que dirige e determina o desenrolar da vida. E quando falamos em vida, não nos atemos a nós, míseros grãos humanos, mas no gigantismo de algo muito além das estrelas, visíveis ou não. Essa ordem, essa disciplina de movimentos, luzes, gases, vácuos, gravidades, são tão exatos que, cremos, depois de identificados, trarão aos pesquisadores a surpresa de uma unidade monótona e sonolenta. Afinal, se a vida é uma eterna repetição de fatos e acontecimentos, por que o universo seria diferente?
Mas até nessa possível monótona e constante repetição, sente-se a força do administrador do sistema que, fazendo com que todas as suas “indústrias” funcionem no mesmo compasso, facilita seu controle e intervenção, caso constatados quaisquer desvios de conduta que possam prejudicar o bom andamento e o sucesso da empreitada.
Nós, partículas ínfimas desse portento natural, somos influenciados física e mentalmente pelos sutis movimentos da máquina maior, chamada UNIVERSO. Isso é evidente até porque participamos intimamente da engrenagem que o movimenta.
Daí concluirmos que se obedecidas as leis determinadas para o funcionamento da Terra e do Universo, não haveria motivos de se temer o surgimento de sanções originadas por má conduta. Tentando explicar melhor, se eu, pequeno parafuso, concordo em ocupar o espaço determinado e cumpro as funções para mim estabelecidas, recebo do “Operador” toda a lubrificação e reapertos exigidos para que a saúde da peça dure pelo tempo de vida estabelecido, sem ferrugens, trincas ou quebras extemporâneas. Concluído esse prazo, serei substituído e encaminhado para uma reciclagem que me permitirá, tempos depois, ser enviado para suprir novas funções em outra parte da máquina.
Que alguém ou alguma força natural criou e pôs em funcionamento a eterna engrenagem, não tenho dúvidas. Que se nós conseguirmos nos ater a cumprir nossas missões cônscios de que a tarefa determinada pela Força Maior não inclui excessos ou agressões à matéria da qual somos compostos, é uma certeza. Assim, seguindo sensitivamente o caminho que a natureza nos mostra, teremos todas as chances de ver uma estrada florida pela saúde,
CALÇADA
Até hoje não sei se era apelido ou sobrenome, mas Calçada encaixava-se como uma luva naquele crioulo alto, magro e falante, que zumbia em redor das mesas que ocupávamos na boemia da Tijuca, Rio Comprido, Estácio e afins.
Nunca soube dele exercendo qualquer atividade que lhe permitisse, sequer, pagar uma dose de qualquer coisa nos bares que freqüentava. Sempre adotado por um grupo, usufruía dos comes e bebes e, via-de-regra, participava dos debates fossem quais fossem os assuntos em pauta. Quando explodiam as gargalhadas, todos os demais procuravam saber qual era a mais nova criação lingüística do negão que, não conseguindo acompanhar a erudição dos eventuais companheiros, inventava termos ou os utilizava de outras maneiras, as mais estapafúrdias possíveis.
Há provas de que num debate em julgamento no Tribunal do Júri, ter um dos oriundos daqueles tempos usado uma de suas criações, inteiramente absorvida pela Promotoria e Magistrado:
- Ora, V.Excia, está usando de uma "prosopopéia manuelina".
Direitos autorais reconhecidos para o Calçada, que se tornara "imberbe", ao declarar que a partir daquela data, não beberia mais nada, promessa que não resistiu mais que um quarto de hora.
Mas o desajuizado tinha um anjo de guarda sempre de plantão. Dona Manuelina lavava roupa para as famílias da região e ainda arranjava tempo para fazer salgadinhos vendidos aos bares que freqüentávamos. Era o único pastel de camarão de bar, onde se identificava o "dito cujo" em seu interior.
Pagava as dívidas do amante e tornou-se figura conhecidíssima na Delegacia da Praça da Bandeira, onde se esgoelava num choro convulso, até que o "Seu" Delegado liberasse o Calçada, detido para averiguações que nunca davam em nada. Não era bonita, bem mais velha que o malandro e exercia sobre ele uma vigilância impressionante. Deixava que bebesse, cantasse seus sambinhas pornográficos e, até, que fosse preso por qualquer desconfiança levantada por algum policial novo na área, mas mulher era só ela e "estamos conversados". Tivesse algum rabo de saia na mesa eventualmente freqüentada pelo crioulo e, todos já sabiam, era questão de tempo para Dona Manuelina aparecer e rodar a baiana, como se dizia naqueles idos de 60.
Eis que anos depois, encontro o Calçada ocupando, surpreendentemente, o banco do trocador de um ônibus da Zona Sul. Reconheceu-me e fez uma festa tão grande que me deixou sem jeito sob os olhares dos demais passageiros. A pergunta tinha de ser feita:
- E Dona Manuelina, como vai?
Houve um hiato na conversa e enquanto arrumava algumas notas do seu caixa, até responder:
- "Larguei-la".
- Como largou... Era a mulher da sua vida, cara! Será possível que você não reconhece tudo o que ela fez para protegê-lo durante um bom pedaço de tempo... Protestei revoltado.
- Pois é. Continuou ele com os olhos voltados para as notas em sua mão. Caí na besteira de arranjar este emprego e ela se tornou um inferno. Examinava minhas roupas, procurava bilhetinhos nos bolsos e finalmente, um dia, peguei-a cheirando minhas cuecas... Mulher quando cheira cueca do marido ou tá a fim de levar uns bofetões ou de matar ele... Antes que acontecesse alguma dessas coisas, larguei-la.
Não pude deixar de dar certa razão ao Calçada.
OBITUÁRIO DE UM JOGADOR
Pensava que os jogadores profissionais tivessem deixado de existir quando parei de ler histórias em quadrinhos, onde viviam naquelas barcaças que navegavam no Rio Mississipi. Ledo engano. Há alguns anos fui apresentado a um homem de meia-idade, alto, bem vestido e fluente em pelo menos, quatro idiomas. Dono de um triplex no Cosme Velho, bairro da classe média alta do Rio de Janeiro (não sei o motivo dos ricos se colocarem nessa tal de “classe média alta”) casa na serra e outro belo apartamento em Cabo Frio. Seus investimentos, segundo contou-me um amigo comum, superavam a casa de milhões de dólares, em bancos nacionais e estrangeiros.
Tocava bem piano, fazendo uso das mãos de dedos longos para não perder a agilidade; entregava-se a exercícios onde calculava mentalmente os resultados - sempre corretos - de multiplicações com seis colunas de números no multiplicador. Além das mágicas onde fazia cartas de baralho aparecerem e sumirem, inventava mesas de pôquer em nossos horários de almoço só para, na terceira rodada, informar quais as cartas cada participante tinha nas mãos, acabando com a graça do jogo.Lembro-me bem quando dizia: "Jogue sempre, o mínimo que seja, mas jogue. Você não sabe o lugar que ocupa na fila da sorte e, quem sabe, não é o primeiro?"
Bom garfo e bom bebedor, nunca dispensou o cigarro "muleta psicológica" que o ajudava a resolver problemas sérios, segundo ele. Aí estava o único risco que não soube calcular. Foi-se após um derrame violento que o deixou sem reconhecer, sequer, os que lhe cercavam. Deve ter odiado perder seu último jogo, o da vida.
sábado, 7 de junho de 2008
MEUS ANJOS
De uma coisa tenho certeza. A da existência dos anjos. Não daqueles com asas enorme e feições ingenuamente angelicais, mas de outros bem mais atléticos e que metem o bedelho na vida da gente quando estamos fazendo besteiras demais.
Diferentes dos amigos que em certos momentos, com toda a razão, enfastiam-se de atender nossos problemas, eles estão sempre presentes ouvindo e dando conselhos que possam nos orientar.
O escritor Paulo Coelho afirma que nossos anjos mandam recados pela boca de terceiros. Quantas vezes isso não aconteceu comigo? Atoleimado na procura de soluções e vem uma criança, um pedinte maluquete da esquina mais próxima ou, até mesmo um colega de trabalho e com uma frase aleatória, coloca em minhas mãos a solução daquele problemaço que enfrentava até aquele momento? Quantas vezes saem de nossas bocas frases, conselhos, comentários que nós próprios, depois, duvidamos da própria capacidade em formulá-los?
Sei lá, mas acho que os meus anjos volta-e-meia tomam uma cerveja comigo, escarrapacham-se com as pernas cruzadas na poltrona ao lado e se fazem de desligados para as tolices de uma piada mal compreendida ou do comentário sobre alguém e do qual vamos nos arrepender mais na frente. É claro que deixam a gente errar... Fazem parte do jogo os tropeços e quedas, bases da reconstrução do muro desabado, por nossa culpa ou pelas próprias contingências da vida.
Mas tenho a certeza, no momento exato lá estão os braços fortes que nos sustêm e, juro, certo semblante divertido com a asneira que iríamos cometer e eles evitaram.
Note. Refiro-me a eles no plural. Não é um só anjo que nos guarda. No meu caso específico, afirmo que um, apenas, jamais conseguiria dar conta de todos os meus erros e anarquias. Tem que ser uma equipe onde todos se entendem pelo olhar e cujo espírito reinante seja o mais divertido possível. Até na hora da nossa morte, já que sabem mais que qualquer ser humano, do mundo melhor aguardando por nós do outro lado da fronteira.