Zebu. Apelido que ganhou logo depois de chegar ao Rio de Janeiro, ainda menor de idade, e conseguir trabalho puxando um longo carro de duas rodas, carregando mercadorias entre os trapiches e os depósitos dos grandes atacadistas da Rua do Acre. Morou num pequeno quarto que lhe foi cedido pelo dono de um bar na Praça Mauá, em troca da limpeza do “estabelecimento”, quando fechavam suas portas.
Ao servir o Exército, mudou-se para os alojamentos do Quartel, que eram um luxo se comparados ao tal quarto sem janelas ou ventilação. Participava do time dos “percevejos”, apelido dado aos soldados que, sem opção, moravam nos quartéis.
Ali, além de concluir o curso primário, aprendeu a dirigir, principalmente enormes caminhões, transportando tropas ou pesados equipamentos bélicos. Graças a isso ao dar baixa, foi imediatamente contratado por uma empresa transportadora, indicado por um major que gostava dele.
Viajou muito e, por isso, dormia na sede da empresa quando estava no Rio ou no caminhão, durante as viagens. Por algumas vezes pode dar uma desviada e passar pela casa dos pais, num lugarejo na Paraíba. Em relação ao que tinha recebido até então, o salário era muito bom. Sem despesas de moradia ou alimentação, conseguiu juntar um bom dinheiro. Foram anos de economia até o dia em que comprou a casa, a última da rua, e cujo quintal era invadido pela vegetação do morro, logo ali atrás.
Mais algum tempo e estava tudo arrumadinho, com móveis de segunda mão e limpeza feita por Marlene, a namoradinha que trabalhava como doméstica na casa de Dona Vera, patroa bondosa e que ajudava aquela mulatinha bonita no que podia. Foi quando largou a transportadora e passou dirigir ônibus urbanos.
Logo trouxe os pais, Severino e Francisca, da Paraíba e se juntou com Marlene. Depois de tantos anos, tinha novamente uma família. Era com felicidade que subia a íngreme ladeira todas as noite, após mais uma jornada diária, dirigindo sob o calor intenso da cidade.
Seu Severino ainda estava forte e saudável. Após capinar todo o quintal e ali fazer canteiros de onde colhia algumas verduras, resolveu tentar arranjar um emprego que lhe permitisse ajudar o filho com as despesas da família. Bateu em muitas portas, mas a falta de instrução e a idade, acabaram por fazer com que aceitasse trabalhar na escrituração do jogo-do-bicho, na banca da esquina. Zebu nem tomou conhecimento do fato, mas numa noite ao voltar para casa, encontrou a família sobressaltada. Severino tinha sido preso e até àquela hora, não havia qualquer sinal dele. Imediatamente correu para a Delegacia do bairro. Como já esperava, foi mal recebido e com muito custo e humildade, conseguiu liberar o pai. Com o quê não contava, era o estado físico de Severino. Apanhara muito. O rosto inchado, um olho que mal abria e a camisa suja de sangue, revoltaram o filho:
- Gente, por que uma coisa dessas? Um sujeito velho e quase analfabeto e vocês fazem isso...
Os policiais tentaram intimidá-lo:
- É isso mesmo, cara. Se não quiser levar ele embora, joga no lixo... Tem uma lata aí pertinho de você.
Zebu explodiu:
- Ta certo. Só quero saber se o dono do ponto de bicho foi preso. Nesse vocês não botam a mão. Afinal é quem garante o dinheirinho extra que ganham...
A resposta foi um soco, jogando-o ao chão. Os chutes que se seguiram doeram menos que os gritos impotentes de Severino tentando ajudá-lo.
Foi recolhido ao xadrez quase inconsciente, provocando pena entre os outros detentos. Só o liberaram na manhã seguinte e, mesmo assim, sob ameaças caso voltasse a aparecer ali. Zebu mal podia andar e não fosse a ajuda de um vizinho taxista, jamais teria conseguido chegar até sua casa. Passou uma semana sob os cuidados de Marlene e da mãe. Assim que pode voltar a andar, subiu o morro atrás da casa e em cujo outro lado, sabia, havia uma favela mal afamada, que tinha saída para outro bairro. Foi lá que comprou um revólver trinta e oito e as caixas de munição.
Dali seguiu para a Delegacia aonde chegou por volta da hora do almoço e ficou do outro lado da rua, aguardando. O policial que o agredira saiu para almoçar. O tiro atingiu seu peito, jogando-o para trás. Outros policiais atraídos pelo disparo, surgiram na porta da Delegacia, entre eles aquele que debochara dele e do pai. Um tiro certeiro acertou sua testa, antes mesmo de seus colegas atinassem para o que estava acontecendo.
Voltaram todos pra o interior do prédio, enquanto Zebu, misturado na multidão em pânico, entrou num bar e, para sua surpresa foi imediatamente reconhecido pelo homem aterrorizado atrás do balcão:
- Por favor, não me mate! Pode levar tudo, mas deixe a gente em paz...
Falava e retirava da caixa registradora uma grande quantidade de notas. Zebu, num gesto automático, recolheu o dinheiro amassando-o com uma das mãos e colocando-o no bolso da calça. Nada falou. Saiu e novamente se misturou com o povo, enquanto ouvia alguns tiros dados a esmo pelos policiais atocaiados por trás das portas e janelas da Delegacia.
Não poderia voltar para casa. Os homens mortos seriam ligados rapidamente à violência de dias atrás e assim como o dono do bar, certamente outras pessoas fariam sua descrição para a polícia. Entrou num ônibus e em menos de uma hora subia o morro onde comprara o revólver.
Sem maiores dificuldades, encontrou os marginais que dominavam a região e contou sua história. Tirou o dinheiro amassado do bolso, entregando-o aos bandidos, como se estivesse pagando por proteção. Um deles, atarracado e com a barba por fazer, contou o dinheiro e após dirigir-lhe um olhar sério, falou:
- Homi, até que a grana não é das piores, mas aqui você não pode ficar. Tu mora do outro lado do morro e a polícia logo estará fuçando por essas bandas.
Com um gesto evitou que Zebu o interrompesse e continuou:
- Vamo fazer o seguinte, to te transferindo lá prum morro nos lados da Penha, até a coisa esfriar. Depois tu pode voltar e ficar com gente.
Duas horas mais tarde, Zebu estava protegido, sob as tábuas de um barraco, no alto do tal morro cujo nome sequer sabia.
Os jornais do dia seguinte gritavam em manchetes:
“Marginal comete roubo e mata policiais”
A história fora invertida. Diziam que teria assaltado o bar e flagrado pelos “homens da lei”, os matara covardemente. Se por um lado a mentira o revoltava, por outro passou a ser tratado com respeito por seus anfitriões. Não estava ali um ladrãozinho qualquer, mas um matador de primeira que, com dois tiros, acabara com a raça de dois “gorilas”.
Contaram-lhe que sua casa havia sido cercada, mas que trataram seus familiares com respeito, até porque a ação teve cobertura total da imprensa, faminta de notícias.
Em uma semana já andava pelas vielas do morro e em mais alguns dias se dava ao direito de circular nas ruas do bairro, envolvido no que pensava ser um anonimato seguro. Eis que, de um momento para outro, notou-se cercado por quatro homens ”suspeitos”. Não hesitou em sacar o revólver e, correndo entre os transeuntes, abate-los com uma agilidade surpreendente. Em passos apressados, voltou para a favela que o protegia.
A notícia chegou à sua frente e lá estava um carro de praça que o levou na direção do morro de São Carlos, sua nova e temporária residência. Nessas alturas Zebu era considerado o inimigo público número um. A polícia entrou em prontidão e os alcagüetes acionados na procura de Raimundo de Souza o Zebu, facínora em cujo prontuário havia o registro do assassinato de seis policiais e evidente participação em diversos atos de violência em bairros da periferia, por onde ele jamais sonhara ter passado.
Era a velha estratégia. Se existiam casos de difícil solução, por que não atribuir suas autorias a um marginal em evidência? Ficava bem mais fácil concluir assim os inquéritos.
Enquanto isso, no Morro de São Carlos, aquele paraibano que ainda se sentia o menino que se aventurou a vir para o Sul atrás de uma vida melhor, sentia um aperto no peito, pois sabia não haver volta no mundo em que tinha entrado. Doeu-lhe, ainda, quando vieram avisar que Marlene estava grávida. Sabia que os donos do morro não estavam deixando faltar nada a seus familiares – afinal tinham a certeza de que Zebu, com o tempo, poderia trazer-lhe ganhos muito maiores – mas existia algo cujo valor não era coberto por dinheiro. O amor, o carinho dispensado aos seus, o respeito que granjeara por onde passou.
Se era um bom atirador, agradecia ao mesmo Exército que lhe dera condições de aprender a dirigir e chegar a ser o motorista que comprou sua casa e constituiu família com os ganhos da profissão. Agora, metido até o pescoço naquela confusão toda, conquistava uma posição também de respeito, num mundo que não era o seu.
Sabia que se resolvesse se entregar à polícia, ia passar por muitas dificuldades. Todos conheciam os métodos que utilizavam para matadores de policiais. Talvez se arranjasse um bom dinheiro, poderia fugir para o interior e ficar por lá um ano ou dois... Mas seus protetores se recusavam a incluí-lo nos assaltos, já que pretendiam utiliza-lo em coisas muito mais lucrativas, se conseguissem mantê-lo vivo.
Mas a polícia não pretendia esquecer do atrevimento daquele homicida. Conferia cada informação recebida e invadia as comunidades onde pudesse haver alguma chance de encontrar Zebu. Era uma questão de tempo e paciência.
E foi assim que, quando menos se esperava, cercaram o morro e começaram a revistar casa por casa. Os chefões imediatamente empreenderam fuga através de caminhos previamente preparados e estranharam quando não viram Zebu entre eles. O caboclo, com arma na mão apontada para o solo, descia o morro na direção dos homens fortemente armados. Tinha a certeza de que achara um meio de acabar com todos aqueles problemas. Chegou a passar por alguns que dirigiam suas atenções para um grupo de barracos, segundo eles, suspeitos.
O reconhecimento se deu logo depois e as armas foram disparadas de todos os lados. Zebu caiu vagarosamente, enquanto os projéteis atravessavam seu corpo. Logo a gritaria cessou e um detetive abaixou-se, como se conversasse com o corpo imóvel.
As rádios e os jornais destacaram a morte do facínora e os policiais envolvidos na “captura”, festejaram num bar próximo da Delegacia, o êxito da operação. Lá para as tantas, o detetive aproximou-se do Delegado e falou:
- Sabe, Doutor, só não entendi um coisa...
-O quê?
- Quando cheguei perto do corpo dele, notei que balbuciava alguma coisa. Aí eu me abaixei e cheguei o ouvido perto da boca do cara.
- E ouviu um palavrão?
- Não Senhor... Aí é que está... Ele disse pra mim um
Muito Obrigado.
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