segunda-feira, 28 de julho de 2008

O CAMELÔ

Tomas era seu nome. Mais de sessenta anos, barba por fazer e um sorriso enorme e simpático emoldurado pela pele de um moreno de quem se expõe muito ao sol. Veio oferecer amendoins torrados na mesa externa do bar onde estávamos e aceitou prontamente o convite para sentar-se conosco, feito por um dos integrantes do grupo nessas alturas “mais pra lá do que pra cá”.

Contar sua vida foi o primeiro passo para integrá-lo, já que mostrava um nível cultural muito acima daqueles que, como ele, anunciavam e vendiam objetos e alimentos nas areias e proximidades da praia. Incentivado pelo silêncio dos que o escutavam, relatou sua história.

Certo dia, há mais de trinta anos, estava em sua mesa numa multinacional, quando percebeu o reflexo do sol nos vidros do prédio, no outro lado da rua. Tomado por uma angústia que nem ele próprio explicaria, pegou o paletó e saiu, sob os olhares interrogativos dos demais funcionários.

Causou curiosidade aos freqüentadores, aquele homem de gravata, calças arregaçadas, com o paletó e sapatos nas mãos, deixando a espuma salpicar as pernas, enquanto andava na praia. Sentou-se na areia e fixou o olhar no horizonte, onde uma linha tênue separava o céu do mar.

O quê fizera da vida até ali... Quais seus planos para o futuro... A resposta se resumia a uma palavra: NADA. A família, pai, mãe, irmãos, não passava de um amontoado de gente que mal se falava durante as refeições e desde que cada um colaborasse com as despesas no final do mês, nem era notado. Nada sabiam a respeito uns dos outros.

Aquela noite dormiu na praia e enquanto o dinheiro de sua carteira não acabou, alimentava-se nos botequins da região e se integrou a um grupo de vendedores das areias. Em pouco tempo fazendo uso de sua experiência, já liderava a turma e começou a sugerir modificações no “modus operandi” dos vendedores. Suas idéias foram bem-vindas e logo alugavam informalmente um depósito para guardar as mercadorias no fim do dia, acabando com os buracos feitos na areia, onde escondiam os materiais até a manhã seguinte; instituiu o uso de uniformes para poder diferenciá-los de outros camelôs que eventualmente “invadissem” a área e em menos de um ano, recebeu proposta para gerenciar um pequeno mercado, cujo proprietário observara suas atividades no “comando” daquele grupo, em princípio tão heterogêneo.

Dali para uma organização maior foi um pulo. Em alguns anos já ocupava posição de mais destaque que àquela abandonada quando funcionário da multinacional. Surpreendeu-se, um dia, com a vista sendo ofuscada pelo sol na vidraça da janela da enorme sala que ocupava. Voltara ao princípio, pensou, só que agora tinha mulher e filhos, sérios empecilhos para atitudes drásticas. A sensação de insatisfação o acompanhou pelos anos seguintes, até que os meninos, agora homens, tomassem seus próprios rumos e a mulher morresse.

Esse foi o momento da nova virada de mesa. Viu-se, novamente, à beira da mesma praia e do mesmo mar salpicando-lhe as pernas. Já não era mais aquele jovem, mas arrogava-se ao direito de tentar um recomeço.

Ali estava contando isso tudo, quando um dos meus companheiros de mesa perguntou-lhe se jamais tinha se arrependido. Com o mesmo sorriso aberto, respondeu:

- Vivi minha vida da forma mais intensa possível; tive meus momentos de luta e razões para participar dessas batalhas. A meu ver, alcancei tudo o que queria e prefiro me arrepender do que fiz, a chorar pela perda da chance de mergulhar numa interrogação.

Tomou um gole de chope e continuou:

- Dentro de meu conceito, superei todos os desafios, comprovando ter capacidade em reescrever minha história – danem-se os que me chamam de irresponsável - e se morrer amanhã, quero que escrevam na lápide apenas uma frase: “Aqui jaz alguém que viveu a vida.”

Levantou, despediu-se com a curvatura da cabeça e seguiu seu caminho. Afinal, tinha que vender seus amendoins para defender o prato de comida daquele dia. A nós coube um misto de frustração e admiração por aquele homem que embora indo contra as filosofias comportamentais imposta por uma sociedade, vivera sem contrariar seus ideais.

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