segunda-feira, 28 de julho de 2008
O CAMELÔ
Contar sua vida foi o primeiro passo para integrá-lo, já que mostrava um nível cultural muito acima daqueles que, como ele, anunciavam e vendiam objetos e alimentos nas areias e proximidades da praia. Incentivado pelo silêncio dos que o escutavam, relatou sua história.
Certo dia, há mais de trinta anos, estava em sua mesa numa multinacional, quando percebeu o reflexo do sol nos vidros do prédio, no outro lado da rua. Tomado por uma angústia que nem ele próprio explicaria, pegou o paletó e saiu, sob os olhares interrogativos dos demais funcionários.
Causou curiosidade aos freqüentadores, aquele homem de gravata, calças arregaçadas, com o paletó e sapatos nas mãos, deixando a espuma salpicar as pernas, enquanto andava na praia. Sentou-se na areia e fixou o olhar no horizonte, onde uma linha tênue separava o céu do mar.
O quê fizera da vida até ali... Quais seus planos para o futuro... A resposta se resumia a uma palavra: NADA. A família, pai, mãe, irmãos, não passava de um amontoado de gente que mal se falava durante as refeições e desde que cada um colaborasse com as despesas no final do mês, nem era notado. Nada sabiam a respeito uns dos outros.
Aquela noite dormiu na praia e enquanto o dinheiro de sua carteira não acabou, alimentava-se nos botequins da região e se integrou a um grupo de vendedores das areias. Em pouco tempo fazendo uso de sua experiência, já liderava a turma e começou a sugerir modificações no “modus operandi” dos vendedores. Suas idéias foram bem-vindas e logo alugavam informalmente um depósito para guardar as mercadorias no fim do dia, acabando com os buracos feitos na areia, onde escondiam os materiais até a manhã seguinte; instituiu o uso de uniformes para poder diferenciá-los de outros camelôs que eventualmente “invadissem” a área e em menos de um ano, recebeu proposta para gerenciar um pequeno mercado, cujo proprietário observara suas atividades no “comando” daquele grupo, em princípio tão heterogêneo.
Dali para uma organização maior foi um pulo. Em alguns anos já ocupava posição de mais destaque que àquela abandonada quando funcionário da multinacional. Surpreendeu-se, um dia, com a vista sendo ofuscada pelo sol na vidraça da janela da enorme sala que ocupava. Voltara ao princípio, pensou, só que agora tinha mulher e filhos, sérios empecilhos para atitudes drásticas. A sensação de insatisfação o acompanhou pelos anos seguintes, até que os meninos, agora homens, tomassem seus próprios rumos e a mulher morresse.
Esse foi o momento da nova virada de mesa. Viu-se, novamente, à beira da mesma praia e do mesmo mar salpicando-lhe as pernas. Já não era mais aquele jovem, mas arrogava-se ao direito de tentar um recomeço.
Ali estava contando isso tudo, quando um dos meus companheiros de mesa perguntou-lhe se jamais tinha se arrependido. Com o mesmo sorriso aberto, respondeu:
- Vivi minha vida da forma mais intensa possível; tive meus momentos de luta e razões para participar dessas batalhas. A meu ver, alcancei tudo o que queria e prefiro me arrepender do que fiz, a chorar pela perda da chance de mergulhar numa interrogação.
Tomou um gole de chope e continuou:
- Dentro de meu conceito, superei todos os desafios, comprovando ter capacidade em reescrever minha história – danem-se os que me chamam de irresponsável - e se morrer amanhã, quero que escrevam na lápide apenas uma frase: “Aqui jaz alguém que viveu a vida.”
Levantou, despediu-se com a curvatura da cabeça e seguiu seu caminho. Afinal, tinha que vender seus amendoins para defender o prato de comida daquele dia. A nós coube um misto de frustração e admiração por aquele homem que embora indo contra as filosofias comportamentais imposta por uma sociedade, vivera sem contrariar seus ideais.
sexta-feira, 25 de julho de 2008
NOVA DIMENSÃO
Afirmam os entendidos que existem outras Dimensões em que a vida existe e corre paralela, acima ou abaixo dos nossos padrões, embora não possam ser vistas e ouvidas por nós, mas, apenas, por um grupo especialíssimos de seres humanos que nascem ou são treinados para participar de tal feito.
Assim, a nossa seria a Terceira Dimensão, onde temos noções - nem todos as tem - de altura, largura e profundidade. Até aí, nada de novo. O negócio é a Quarta. Dimensão, é claro, onde além das três noções que, em tese, absorvemos, teríamos a do TEMPO. Aí o bicho pega. Como será esse negócio de ter noção do tempo, diferente da que conhecemos? Os mais filosóficos afirmam que na Terceira Dimensão tudo acontece no hoje. O passado foi um hoje que se foi e o futuro não existe. Aquilo que você planeja hoje, hoje acontecerá. Tudo bem, e daí, como vai ser na Quarta?
Segundo tentaram me explicar os tais entendidos, o TEMPO não passa de um enorme cilindro cujas paredes estão em constante movimento, permitindo que os acontecimentos subam, ou desçam, numa velocidade tal que o acontecido agora, pode estar se repetindo no amanhã ou no ontem. Deu para entender? Aposto que não.O fato é a afirmativa de que nosso planeta está sendo transferido para esse novo degrau de evolução e a nós viventes que estivermos presentes quando tal evento acontecer, caberá ver e entender esse progresso. Com a correria da vida moderna, só tenho uma dúvida. Teremos TEMPO para perceber a novidade?
O GAROTÃO
André não era jovem, mas fazia questão de manter uma forma física invejada pelos da sua idade, graças a quilômetros percorridos em esteiras rolantes e pesadíssimos halteres levantados três vezes por semana, sob dedicada atenção de um preparador físico destinado unicamente para atendê-lo na academia e que lhe custava uma fortuna por mês. Além disso, havia a assessoria da nutricionista, do cardiologista e do clínico geral, provas incontestáveis de sua fixação pelo corpo perfeito.
Não que isso o impedisse de continuar dirigindo sua empresa bem sucedida. Gostava, entretanto, de observar os olhares das jovens funcionárias e cultivar uma rede de informantes que “captavam” notícias na chamada “rádio do corredor”. Ignorava as fofocas, mas dava especial atenção aos comentários elogiosos ao seu físico.
Incrível como possa parecer, não era dado a conquistas. Talvez, quem sabe, pelo perigo de eventuais insucessos sexuais comuns em sua idade e a aversão a tomar qualquer remédio que o ajudasse nesse sentido, mas que poria em dúvida sua aparente virilidade. Marido extremoso e pai atento satisfazia-se com os elogios e em cultivar algumas “paqueras” à distância.
Certa manhã chegou cabisbaixo ao escritório, o que foi notado pela secretária. Embora isso não fosse comum, em algumas outras ocasiões acontecera e aí, cumprindo instruções recebidas do Dr. Ribamar, misto de gerente jurídico e bajulador de plantão cujo relacionamento com o chefão equilibrava-se entre a amizade e um puxa-saquismo discreto, colocou-o a par do acontecido.
Ribamar colheu alguns documentos que justificariam sua ida à sala do chefe e para lá rumou. Encontrou André realmente abatido. Após os rodeios de praxe, perguntou se podia fazer algo pelo chefe/amigo. A resposta foi imediata. Como se desaguasse uma enorme frustração contou sua triste história:
Tinha acabado de tomar um café no bar da esquina, quando percebeu que três jovens com uniformes escolares olhavam e sorriam para ele. Evidente que eram quase meninas, mas não poderia deixar “passar em branco” uma “paquera”, mesmo que da forma mais descompromissada possível. Assim, sorriu incentivando a troca de olhares e duas delas fizeram-lhe um sinal perguntando se podiam falar-lhe. Claro que concordou e elas atravessaram a rua rindo muito e lhe disseram:
- Tio, sua braguilha está aberta.
Saíra dali se arrumando e ouvindo as gargalhadas das meninas às suas costas. Nem tanto pelo vexame da exposição indevida, mas abatidíssimo por ter sido chamado de “tio”, afirmação definitiva de que o acharam idoso demais para elas.
Pior que isso, só a internação em um asilo geriátrico...
quinta-feira, 17 de julho de 2008
UMA NOITE PARA FICAR NA HISTÓRIA
Estava sozinho. A mulher viajara para assistir à mãe doente em São Paulo e os filhos, já casados, moravam no outro lado da cidade. Não conseguia prestar atenção no programa que passava na televisão. Seus pensamentos voavam sem se deterem em nada. Surgiu a vontade de tomar uma cerveja. Na geladeira, sabia não haver nenhuma. Aliás, há tempos deixara de lado o hábito de bebê-las enquanto assistia o futebol, para evitar a implicância de Carmem com a molhação que fazia na pequena mesa de centro, onde sempre esquecia o copo. Sair nas sextas após o expediente, para encontrar amigos em um bar qualquer e bater o chamado “papo furado” esquecera, graças à cara fechada da mulher que insistia em querer acompanhá-lo.
Levantou-se e em poucos minutos trocara de roupa e trancava a porta da casa. Meio inseguro em princípio, resolveu escolher um lugar longe de onde morava. Sabia que sua presença por ali num boteco qualquer, daria motivos para fofocas durante semanas. O barzinho escolhido até que era simpático. Preferiu a mesa do canto, embaixo do toldo que ocupava metade da calçada e ficou por ali ouvindo a música tocada por um desses grupos que pulam de bar em bar nas calçadas da Zona Sul, em busca de uns trocados. As batatas fritas, companheiras fiéis dos chopinhos, estavam uma delícia e ali teria ficado quieto com seus pensamentos, não fosse alguém gritar alegremente:
- Batista, que bons ventos o trazem de volta à boemia!
Lá estava Nilton, seu velho companheiro dos tempos de solteiro, grande como sempre e com uma cintura bem mais larga daquela de épocas em que faziam musculação, ávidos por impressionar as meninas na praia. Com ele, mais três rostos não totalmente estranhos sorriam também. Sim, eram contemporâneos menos próximos, mas partícipes das amalucadas aventuras da juventude.
Migrou para a outra mesa e sentiu-se mais confortável, tendo com quem conversar. E como tinham assuntos a colocar em dia, meu Deus! Era o único ainda casado com a mesma mulher; todos já tinham netos, mas só ele renunciara aos encontros marcados a cada semana num bar diferente, sob o pretexto de acharem o melhor chope da cidade; continuava proibido entre eles, falar de (suas) mulheres ou problemas familiares. Era uma reunião para desopilar o fígado, diziam.
A noite passava rapidamente, até que em determinado momento surge um tumulto. O homem alto e atlético fora até o Caixa e com uma pistola em punho, pegara todo o dinheiro disponível. Alguns clientes sentados na parte interna do bar, começaram com a gritaria. O assaltante, nervoso, disparou em direção ao teto e aproveitando a confusão, correu na direção da saída. Nilton sem se levantar, esticou a perna fazendo o bandido tropeçar, cair e largar a arma. Somente Batista notou a presença do cúmplice na calçada, posicionando-se para defender o companheiro. Encorajado pelos muitos chopes bebidos, fingiu correr da baderna em direção à rua, deu a volta e pegou o homem pelas costas, numa gravata que, nos velhos tempos, jamais alguém se livraria. O sujeito praticamente ignorou o famoso golpe, mas conseguiu evitar que sacasse a arma e rolou agarrado a ele pelo chão. Só então chamou a atenção dos companheiros que mesmo não entendendo o motivo da “briga paralela” imobilizaram o sujeito e, aí, souberam de quem se tratava.
A polícia chegou em poucos minutos e as palmas e aclamações dos frequentadores do bar, não livraram os heróis - Batista, Nilton e os demais companheiros - de darem com os costados na Delegacia, onde repórteres de plantão se encarregaram da publicidade do fato.
Na manhã seguinte foi acordado por um dos filhos, assustado com a notícia de primeira página, onde a foto do pai e seus amigos era destaque; a mulher voltou imediatamente de São Paulo, sob o velho pretexto de: “Não posso deixar o Batista sozinho um dia que ele desanda a fazer besteiras.” Só não contava encontrá-lo com o corpo doído, algumas escoriações, mas feliz com a reverência dos vizinhos:
- Eu sempre achei o Seu Batista com um jeito de homem que resolve... Dizia Dona Olinda.
- É bom saber que a gente tem alguém desse quilate por perto... Falava o Seu Nelson, velhinho simpático do quatrocentos e três.
Carmem desistiu da bronca ensaiada desde que saíra de São Paulo, principalmente por sentir que tudo aquilo fizera um bem enorme ao velho companheiro, cujo olhar voltara a brilhar como antigamente.
No final da outra semana, comunicou abrir mão das exigências que impediam Batista de encontrar com os amigos e não aceitou o convite para ir na reunião seguinte, como convidada de honra, por saber que dificilmente agüentaria uma noite inteira de bravatas, contadas pelos, agora, heróis dos bares cariocas.
Tudo, menos isso. Afinal, sua paciência tinha limites.
sábado, 5 de julho de 2008
SONHOS DE VIDA
Tenho certeza de que estou nesta vida para colher meus sonhos.
Chega de tristezas, dramas e amarguras. Quero mais dias de sol, mais sorrisos, mais olhos brilhando; chega de notícias más de enfrentamentos inglórios, de balas perdidas.
Quero de volta os planos bem urdidos e nunca colocados em prática; quero as mãos de uma criança procurando apoio e sua tranqüilidade ao alcançar o colo amigo; preciso voltar a fazer rir os à minha volta e não me deixar esquecer pelas lições dadas aos menos experientes durante a passagem nos caminhos trilhados.
Jamais farei da vida uma poesia, mas posso ajudar a torná-la mais leve aos que carregam cruzes pesadas demais. Quem sabe uma palavra, um incentivo na hora certa, não pode mudar destinos? Quem sabe se não estou aqui para, pelo menos, mostrar aos que se iniciam a maneira pela qual jamais deverão se pautar?
Não me importa desde que, com isso, esteja colhendo meus sonhos e dando como encerrada uma missão imposta antes de chegar neste planeta.
Se as lembranças deixadas forem as do eco de uma gargalhada, de um gesto amistoso, de um carinho na hora certa, estarei satisfeito. Certamente meus sonhos terão sido realizados.
terça-feira, 1 de julho de 2008
O MARGINAL
Zebu. Apelido que ganhou logo depois de chegar ao Rio de Janeiro, ainda menor de idade, e conseguir trabalho puxando um longo carro de duas rodas, carregando mercadorias entre os trapiches e os depósitos dos grandes atacadistas da Rua do Acre. Morou num pequeno quarto que lhe foi cedido pelo dono de um bar na Praça Mauá, em troca da limpeza do “estabelecimento”, quando fechavam suas portas.
Ao servir o Exército, mudou-se para os alojamentos do Quartel, que eram um luxo se comparados ao tal quarto sem janelas ou ventilação. Participava do time dos “percevejos”, apelido dado aos soldados que, sem opção, moravam nos quartéis.
Ali, além de concluir o curso primário, aprendeu a dirigir, principalmente enormes caminhões, transportando tropas ou pesados equipamentos bélicos. Graças a isso ao dar baixa, foi imediatamente contratado por uma empresa transportadora, indicado por um major que gostava dele.
Viajou muito e, por isso, dormia na sede da empresa quando estava no Rio ou no caminhão, durante as viagens. Por algumas vezes pode dar uma desviada e passar pela casa dos pais, num lugarejo na Paraíba. Em relação ao que tinha recebido até então, o salário era muito bom. Sem despesas de moradia ou alimentação, conseguiu juntar um bom dinheiro. Foram anos de economia até o dia em que comprou a casa, a última da rua, e cujo quintal era invadido pela vegetação do morro, logo ali atrás.
Mais algum tempo e estava tudo arrumadinho, com móveis de segunda mão e limpeza feita por Marlene, a namoradinha que trabalhava como doméstica na casa de Dona Vera, patroa bondosa e que ajudava aquela mulatinha bonita no que podia. Foi quando largou a transportadora e passou dirigir ônibus urbanos.
Logo trouxe os pais, Severino e Francisca, da Paraíba e se juntou com Marlene. Depois de tantos anos, tinha novamente uma família. Era com felicidade que subia a íngreme ladeira todas as noite, após mais uma jornada diária, dirigindo sob o calor intenso da cidade.
Seu Severino ainda estava forte e saudável. Após capinar todo o quintal e ali fazer canteiros de onde colhia algumas verduras, resolveu tentar arranjar um emprego que lhe permitisse ajudar o filho com as despesas da família. Bateu em muitas portas, mas a falta de instrução e a idade, acabaram por fazer com que aceitasse trabalhar na escrituração do jogo-do-bicho, na banca da esquina. Zebu nem tomou conhecimento do fato, mas numa noite ao voltar para casa, encontrou a família sobressaltada. Severino tinha sido preso e até àquela hora, não havia qualquer sinal dele. Imediatamente correu para a Delegacia do bairro. Como já esperava, foi mal recebido e com muito custo e humildade, conseguiu liberar o pai. Com o quê não contava, era o estado físico de Severino. Apanhara muito. O rosto inchado, um olho que mal abria e a camisa suja de sangue, revoltaram o filho:
- Gente, por que uma coisa dessas? Um sujeito velho e quase analfabeto e vocês fazem isso...
Os policiais tentaram intimidá-lo:
- É isso mesmo, cara. Se não quiser levar ele embora, joga no lixo... Tem uma lata aí pertinho de você.
Zebu explodiu:
- Ta certo. Só quero saber se o dono do ponto de bicho foi preso. Nesse vocês não botam a mão. Afinal é quem garante o dinheirinho extra que ganham...
A resposta foi um soco, jogando-o ao chão. Os chutes que se seguiram doeram menos que os gritos impotentes de Severino tentando ajudá-lo.
Foi recolhido ao xadrez quase inconsciente, provocando pena entre os outros detentos. Só o liberaram na manhã seguinte e, mesmo assim, sob ameaças caso voltasse a aparecer ali. Zebu mal podia andar e não fosse a ajuda de um vizinho taxista, jamais teria conseguido chegar até sua casa. Passou uma semana sob os cuidados de Marlene e da mãe. Assim que pode voltar a andar, subiu o morro atrás da casa e em cujo outro lado, sabia, havia uma favela mal afamada, que tinha saída para outro bairro. Foi lá que comprou um revólver trinta e oito e as caixas de munição.
Dali seguiu para a Delegacia aonde chegou por volta da hora do almoço e ficou do outro lado da rua, aguardando. O policial que o agredira saiu para almoçar. O tiro atingiu seu peito, jogando-o para trás. Outros policiais atraídos pelo disparo, surgiram na porta da Delegacia, entre eles aquele que debochara dele e do pai. Um tiro certeiro acertou sua testa, antes mesmo de seus colegas atinassem para o que estava acontecendo.
Voltaram todos pra o interior do prédio, enquanto Zebu, misturado na multidão em pânico, entrou num bar e, para sua surpresa foi imediatamente reconhecido pelo homem aterrorizado atrás do balcão:
- Por favor, não me mate! Pode levar tudo, mas deixe a gente em paz...
Falava e retirava da caixa registradora uma grande quantidade de notas. Zebu, num gesto automático, recolheu o dinheiro amassando-o com uma das mãos e colocando-o no bolso da calça. Nada falou. Saiu e novamente se misturou com o povo, enquanto ouvia alguns tiros dados a esmo pelos policiais atocaiados por trás das portas e janelas da Delegacia.
Não poderia voltar para casa. Os homens mortos seriam ligados rapidamente à violência de dias atrás e assim como o dono do bar, certamente outras pessoas fariam sua descrição para a polícia. Entrou num ônibus e em menos de uma hora subia o morro onde comprara o revólver.
Sem maiores dificuldades, encontrou os marginais que dominavam a região e contou sua história. Tirou o dinheiro amassado do bolso, entregando-o aos bandidos, como se estivesse pagando por proteção. Um deles, atarracado e com a barba por fazer, contou o dinheiro e após dirigir-lhe um olhar sério, falou:
- Homi, até que a grana não é das piores, mas aqui você não pode ficar. Tu mora do outro lado do morro e a polícia logo estará fuçando por essas bandas.
Com um gesto evitou que Zebu o interrompesse e continuou:
- Vamo fazer o seguinte, to te transferindo lá prum morro nos lados da Penha, até a coisa esfriar. Depois tu pode voltar e ficar com gente.
Duas horas mais tarde, Zebu estava protegido, sob as tábuas de um barraco, no alto do tal morro cujo nome sequer sabia.
Os jornais do dia seguinte gritavam em manchetes:
“Marginal comete roubo e mata policiais”
A história fora invertida. Diziam que teria assaltado o bar e flagrado pelos “homens da lei”, os matara covardemente. Se por um lado a mentira o revoltava, por outro passou a ser tratado com respeito por seus anfitriões. Não estava ali um ladrãozinho qualquer, mas um matador de primeira que, com dois tiros, acabara com a raça de dois “gorilas”.
Contaram-lhe que sua casa havia sido cercada, mas que trataram seus familiares com respeito, até porque a ação teve cobertura total da imprensa, faminta de notícias.
Em uma semana já andava pelas vielas do morro e em mais alguns dias se dava ao direito de circular nas ruas do bairro, envolvido no que pensava ser um anonimato seguro. Eis que, de um momento para outro, notou-se cercado por quatro homens ”suspeitos”. Não hesitou em sacar o revólver e, correndo entre os transeuntes, abate-los com uma agilidade surpreendente. Em passos apressados, voltou para a favela que o protegia.
A notícia chegou à sua frente e lá estava um carro de praça que o levou na direção do morro de São Carlos, sua nova e temporária residência. Nessas alturas Zebu era considerado o inimigo público número um. A polícia entrou em prontidão e os alcagüetes acionados na procura de Raimundo de Souza o Zebu, facínora em cujo prontuário havia o registro do assassinato de seis policiais e evidente participação em diversos atos de violência em bairros da periferia, por onde ele jamais sonhara ter passado.
Era a velha estratégia. Se existiam casos de difícil solução, por que não atribuir suas autorias a um marginal em evidência? Ficava bem mais fácil concluir assim os inquéritos.
Enquanto isso, no Morro de São Carlos, aquele paraibano que ainda se sentia o menino que se aventurou a vir para o Sul atrás de uma vida melhor, sentia um aperto no peito, pois sabia não haver volta no mundo em que tinha entrado. Doeu-lhe, ainda, quando vieram avisar que Marlene estava grávida. Sabia que os donos do morro não estavam deixando faltar nada a seus familiares – afinal tinham a certeza de que Zebu, com o tempo, poderia trazer-lhe ganhos muito maiores – mas existia algo cujo valor não era coberto por dinheiro. O amor, o carinho dispensado aos seus, o respeito que granjeara por onde passou.
Se era um bom atirador, agradecia ao mesmo Exército que lhe dera condições de aprender a dirigir e chegar a ser o motorista que comprou sua casa e constituiu família com os ganhos da profissão. Agora, metido até o pescoço naquela confusão toda, conquistava uma posição também de respeito, num mundo que não era o seu.
Sabia que se resolvesse se entregar à polícia, ia passar por muitas dificuldades. Todos conheciam os métodos que utilizavam para matadores de policiais. Talvez se arranjasse um bom dinheiro, poderia fugir para o interior e ficar por lá um ano ou dois... Mas seus protetores se recusavam a incluí-lo nos assaltos, já que pretendiam utiliza-lo em coisas muito mais lucrativas, se conseguissem mantê-lo vivo.
Mas a polícia não pretendia esquecer do atrevimento daquele homicida. Conferia cada informação recebida e invadia as comunidades onde pudesse haver alguma chance de encontrar Zebu. Era uma questão de tempo e paciência.
E foi assim que, quando menos se esperava, cercaram o morro e começaram a revistar casa por casa. Os chefões imediatamente empreenderam fuga através de caminhos previamente preparados e estranharam quando não viram Zebu entre eles. O caboclo, com arma na mão apontada para o solo, descia o morro na direção dos homens fortemente armados. Tinha a certeza de que achara um meio de acabar com todos aqueles problemas. Chegou a passar por alguns que dirigiam suas atenções para um grupo de barracos, segundo eles, suspeitos.
O reconhecimento se deu logo depois e as armas foram disparadas de todos os lados. Zebu caiu vagarosamente, enquanto os projéteis atravessavam seu corpo. Logo a gritaria cessou e um detetive abaixou-se, como se conversasse com o corpo imóvel.
As rádios e os jornais destacaram a morte do facínora e os policiais envolvidos na “captura”, festejaram num bar próximo da Delegacia, o êxito da operação. Lá para as tantas, o detetive aproximou-se do Delegado e falou:
- Sabe, Doutor, só não entendi um coisa...
-O quê?
- Quando cheguei perto do corpo dele, notei que balbuciava alguma coisa. Aí eu me abaixei e cheguei o ouvido perto da boca do cara.
- E ouviu um palavrão?
- Não Senhor... Aí é que está... Ele disse pra mim um
Muito Obrigado.