A mudança de endereço não significou qualquer elevação no “status”de Dirceu. Pelo contrário, Ondina, sua mulher, deixou para trás um número razoável de freguesas para as quais lavava e passava, já que na nova casa, se assim pudessem chamar os dois cômodos alugados e com o banheiro compartilhado, não havia espaço para essas atividades.
Evidente que o nível dos novos vizinhos, mais tranqüilos e atenciosos, deixava longe o do pessoal da favela de onde tinham saído. Mas não fora esse o motivo da troca de endereço. Dirceu, além de conseguir os dois cômodos por um aluguel muito baixo, passou a ficar bem mais próximo do centro da cidade, onde trabalhava como ascensorista num prédio comercial. Tinha, ainda, o filho Darcy, que podia ir a pé para o Quartel no qual cumpria o Serviço Militar. Ondina com o passar do tempo, certamente conseguiria um emprego de doméstica nas redondezas. Era só esperar que ficasse um pouco mais conhecida.
Darcy foi quem mais aproveitou a mudança. Ali podia usar as roupas que gostava, sem ouvir piadinhas idiotas dos malandros da favela. Esguio, ombros largos, tinha a boca rasgada demais para o seu gosto, mas no resto, até que se evidenciava entre os da sua idade.
Ainda estava naquele período mais duro do Quartel. Os primeiros três meses eram os que os exercícios, ordem unida e a prática de tiro esgotavam as reservas físicas dos recrutas. Depois, sabia, o grupo seria distribuído entre os pelotões e praticamente só faria os trabalhos internos, nos quais os oficiais e sargentos não queriam sujar as mãos. Havia, também, os serviços burocráticos em que se aproveitavam os de melhor nível cultural e, melhor ainda, se fossem bons digitadores. Ali depositava suas esperanças. Já iniciara o segundo grau e aprendera digitação ajudando uma vizinha a fazer trabalhos para alguns escritórios, aproveitando para defender uma grana extra, para seus gastos com diversão, que não tinha coragem de pedir ao pai.
Sabia que estava sendo observado pela Sargenteação, espécie de secretaria do Comando da Companhia, a partir do momento que travou conhecimento com o Cabo Marcos, por coincidência morador próximo do seu novo endereço. Embora evitasse ir e voltar do Quartel em sua companhia – o Cabo não gostava que o acompanhassem nesse trajeto - sempre o encontrava à noite, quando batiam longos papos.
Foi assim que tomou conhecimento da tradição que o Sargento Hélcio estabelecera. A Sargenteação era composta por ele, dois cabos e um soldado, este uma espécie de contínuo do “escritório”. Quando o soldado era promovido a Cabo ou ao dar baixa, indicava outro soldado para ocupar seu lugar. Isso, segundo Marcos, aconteceria no próximo mês de novembro e ele indicara Darcy para substituí-lo, o que justificava a cobrança maior do Sargento Hélcio, exigindo-lhe melhores resultados no período de treinamento pelo qual passava. Não sabia que alguns de seus trejeitos tinham sido observados pelo Sargento:
- Escute, Cabo. Você não acha esse soldado meio esquisito?
- Sargento, eu só acho que o Soldado Darcy, acima de tudo, é competente e atento às ordens que recebe.
- Certo... Só que se der algum ataque de viadagem aqui dentro, vou jogá-lo pela janela...
Todos riram, mas a presença de Darcy na Sargenteação era certa e assim, um mês antes da baixa do Cabo, já estava entre eles, aprendendo os serviços.
Com a saída de Marcos, Darcy passou longo período sem encontrá-lo. Dedicava-se às atividades do Quartel e embora o pai esperasse que ele seguisse a carreira militar, seus sonhos eram outros. Para evitar problemas de convivência com a família e amigos, guardava seus planos de se tornar bailarino em segredo.
Num fim de tarde encontrou-se com Marcos. Este arranjara um emprego muito bom e naquele dia estava recebendo seu primeiro contracheque, razão do convite para que fossem a uma churrascaria.
Jantaram e assistiram ao show onde enquanto ouviam o cantor, bailarinos dançavam num patamar mais elevado, atrás do artista. Incentivado pelas danças e cervejas bebidas, acabou contando seu segredo para o amigo, que o ouviu sem demonstrar qualquer surpresa. Ao contrário, aconselhou-o a procurar um professor ou alguém que conhecesse melhoro assunto, pois achava temerário que Darcy continuasse a se exercitar fundamentado, apenas, no que lia em revistas ou assistia em entrevistas e filmes. Naquele momento se justificava a musculatura desenvolvida dos braços e pernas de Darcy, obtidas em exercícios de alongamento e pesos, mantendo a elasticidade do corpo bem acima do naturalmente exigido e que visava dar-lhe condições de saltar ou sustentar uma bailarina no ar, sem qualquer demonstração de esforço.
Jamais tivera qualquer contato sexual. Tanto mulheres como homens, não o atraíam. Gostava, sim, de observar belos corpos harmônicos e bem trabalhados. Nada além disso. Por outro lado, procurava disciplinar-se e evitar os trejeitos afeminados que, muitas vezes, fizeram-no alvo de chacotas, principalmente enquanto morou na favela, de triste lembrança.
Marcos, sabedor dos sonhos de Darcy, procurou um amigo de seu pai, empresário teatral. Foi recebido calorosamente por Ismael que o conhecia desde criança e contou-lhe os planos do amigo. Conforme esperava, sofreu provocações por parte de Ismael, já que a impressão geral era a de que todo bailarino era homossexual e ter um amigo assim, não seria um bom cartão de visitas.
O importante é ter saído de lá com a carta de apresentação pretendida, endereçada a Neuza, bailarina famosa e diretora de uma companhia de danças. Tudo isso se deu sem o conhecimento do amigo. Assim, quando lhe entregou a carta, viu os olhos de Darcy cheios de lágrimas e seu sorriso rasgar a boca enorme.
Na data combinada, lá estava o rapaz frente-a-frente com Neuza. Mulata como ele, magra e com porte nobre. Leu a mensagem de Ismael como se não soubesse do que se tratava e examinou Darcy dos pés à cabeça, ignorando seu nervosismo. Segurou-o pela mão e levou-o para outra sala, imensa e sem móveis, exceto por um aparelho de som pousado sobre um banco tosco e fez com que se ouvisse um samba. Virou-se para Darcy e disse friamente:
- Vá lá, dance...
E Darcy dançou. Veio depois um jazz e, finalmente uma valsa clássica. O jovem se entregou de corpo e alma aos movimentos que seus reflexos ditavam. Repentinamente a música parou. Viu Neuza com os braços cruzados, olhando-o séria:
- O quê faz na vida, rapaz?
- No momento, nada. Acabo de me desligar do Exército...
Neuza interrompeu a conversa e caminhou na direção do escritório em que o tinha recebido. De costas e com um gesto de mãos, disse:
- Esteja aqui amanhã por volta das duas horas. Não coma nada pesado no almoço. Quero fazer uns testes com você.
Embora nada houvesse de concreto, o convite para retornar aumentou as esperanças de Darcy. Procurou por Marcos, mas não conseguiu encontrá-lo. Queria dividir a sensação de vitória com alguém que entendesse a importância daquele momento. Foi uma longa noite. No dia seguinte lá estava, duas em ponto, enfrentando o olhar sério de Neuza e a curiosidade de dois jovens mais ou menos de sua idade, que trajavam malhas apropriadas para a dança.
- Este é o rapaz de quem falei, disse a mulher para os outros que o olhavam curiosos.
Virou-se em direção de Darcy e ordenou, apontando para a porta onde se lia “Vestiário Masculino”:
- Vá até lá e troque-se. Tem uma malha pendurada. Vista e volte logo.
Pela primeira vez o rapaz se viu dentro de uma roupa daquelas. Justa como se formasse uma outra pele, não permitia que passasse despercebido o mínimo acúmulo de gordura. Imaginou, divertido, o Sargento Hélcio, com aquela barriga de bebedor de cerveja, num traje igual. Voltou sorrindo para a sala onde o grupo o esperava.
Momentos depois fazia exercícios de alongamento nas barras paralelas, acompanhando os movimentos dos outros dois companheiros e com intervenções constantes de Neuza, corrigindo sua postura. O exercício seguinte foi observar a dança dos dois bailarinos e tentar imitar seus movimentos num exercício solo. No momento em que a música parou, recebeu ordens para tomar um banho e retornar ao escritório.
Os músculos de Darcy doíam, o suor lavava seu corpo, mas estava feliz por ter enfrentado aquela experiência. Mesmo que não fosse aprovado, sabia o caminho a seguir.
- Você se saiu melhor que o esperado, disse Neuza. Já tinha alguma experiência com a dança?
Darcy contou-lhe dos exercícios que praticava às escondidas e as poucas aulas recebidas numa escola recomendada por um amigo. Naquele momento iniciava-se a carreira de um bailarino que não considerava a dança como um trabalho, mas como uma missão.
O jovem dedicava-se com um afinco cada vez maior, cumprindo as instruções e ensinamentos recebidos e esmerava-se no quanto podia, a cada gesto ou posição. O dinheiro era pouco, mas ajudava muito em casa, embora o velho Dirceu não apoiasse aquele negócio de filho bailarino. Se não apoiava, também não impedia e assim, Darcy crescia mais e mais.
Vieram as apresentações da Companhia de Danças, as viagens pelo Brasil e pelo mundo. Pode conhecer diversos países e o estudo da língua inglesa, exigido por Neuza como parte integrante da formação de qualquer bailarino, facilitava suas andanças.
Evidente que os preconceitos eram inerentes à profissão escolhida. Raciais em alguns lugares, sexuais em outros e ambos mais adiante. Isso não o incomodava. Sua cor e seu porte nos países nórdicos, por exemplo, promoviam interesse e até excitação por parte da platéia feminina.
Numa dessas viagens, recebeu convite de uma Companhia francesa de prestígio internacional para integrar seus quadros. Relutou, mas foi incentivado pela própria Neuza, entusiasmada com a possibilidade de um futuro brilhante para seu pupilo.
E lá se foi Darcy dançar para o mundo. Embora longe do Brasil por quase cinco anos, enviava suas economias para o pai que, após comprar um confortável apartamento na zona sul, adquiriu outros imóveis em bairros valorizados da cidade. “Afinal”, dizia Dirceu, “a gente não tem cultura, mas não é burro”. Assim garantia para o filho um futuro tranqüilo, quando a vida de bailarino acabasse.
Finalmente, a “tournée” incluiu o Brasil em suas andanças. Passaram por diversas capitais e concluíram as apresentações no Rio de Janeiro. Após conhecer a nova residência a aprovar as excelentes aplicações feitas pelo pai, Darcy aproveitou um momento de folga para procurar pelo velho amigo Marcos.
Afinal, se tudo aquilo estava acontecendo, era graças ao primeiro empurrão dado por ele. Guardava um carinho e uma gratidão profundos pelo amigo e, em seu inconsciente, torcia por poder fazer algo que facilitasse a vida de Marcos. Podia-se, naquele momento, considerar um homem rico.
Chegou à velha rua num táxi e com vestes mais discretas que às de costume, bateu palmas no portão da casa do amigo. Foi atendido por uma senhora que reconheceu como a mãe de Marcos. A mulher não se lembrava dele e com a traquilidade dos conformados, informou-lhe que Marcos morrera atropelado há cerca de dois anos.
Saiu dali em choque. Claro que jamais escreveu ou pediu notícias do companheiro, mas nunca poderia imaginar que acontecesse algo assim... Estava com vinte e cinco anos e Marcos seria, no máximo, um ano mais velho...
Na noite seguinte, deu-se a apresentação final da famosa troupe. Teatro Municipal lotado e Darcy, primeiro bailarino, fez uma apresentação elogiadíssima pela crítica e jamais esquecida pelos que a assistiram.
As lágrimas que escorriam por seu rosto quando voltou para agradecer aos aplausos de uma platéia de pé, poderiam ser entendidas como a emoção do artista que voltava vitorioso ao seu país depois de tantas andanças. Só Darcy sabia que era sua última homenagem ao amigo que se fora, aliás, só ele e Marcos que, tinha certeza, estava sorrindo e o aplaudindo também. De onde estivesse.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
CRISE, QUE CRISE?
Em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, um vendedor ambulante comenta:
- Crise? Que crise, m´eirmão... Tô vendendo minhas bijuterias que nem água... Passou o Natal e, ó, continuo no mermo ritmo. Se bobear, até contrato mais gente pra fabricar as peças.
Numa cobertura no Leblon, bairro de classe média alta (continuo insistindo: por que rico se intitula desse jeito? ) um grupo toma um uísque admirando a lua que reflete sua luz sobre o mar:
- Crise? Até agora não me afetou, diz um deles. Investi certo e nunca dei ouvidos aos “cantos de sereias” que volta-e-meia surgem no mercado financeiro. Dinheiro fácil, da mesma forma que surge, desaparece. Prefiro navegar em águas calmas a surfar em altas ondas. Quem tem equilíbrio e sabe analisar com frieza, não vai se preocupar nunca.
O empregado que serve aos ricaços, é primo do empresário camelô lá de Madureira. É claro que chega à conclusão de que a tal crise não passa de uma babaquice de um monte de otários espalhados pelo mundo.
Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Na verdade, muita gente séria aconselhada por seus agentes financeiros, viu nas propostas dos bancos bons investimentos cujas bases, entretanto, inexistiam e desabaram quando a verdade apareceu.
Afinal, eram ofertas de negócios de que a metade do mundo aceitou entrar e jamais poderia deixar de levar em conta o passado de seriedade e a segurança de tais instituições. Quando veio a derrocada, fortunas se tornaram pó.
E agora, para onde vai o mundo? As notícias são terríveis para as grandes potências e nem tanto assim para o Brasil, seguindo os analistas e o próprio Presidente Lula.
A nós, humilde maioria da população, nada há a fazer se não deixar o tempo passar e torcer para que nossos empregos se mantenham incólumes ao desespero que nos chega através das notícias da TV.
- Crise? Que crise, m´eirmão... Tô vendendo minhas bijuterias que nem água... Passou o Natal e, ó, continuo no mermo ritmo. Se bobear, até contrato mais gente pra fabricar as peças.
Numa cobertura no Leblon, bairro de classe média alta (continuo insistindo: por que rico se intitula desse jeito? ) um grupo toma um uísque admirando a lua que reflete sua luz sobre o mar:
- Crise? Até agora não me afetou, diz um deles. Investi certo e nunca dei ouvidos aos “cantos de sereias” que volta-e-meia surgem no mercado financeiro. Dinheiro fácil, da mesma forma que surge, desaparece. Prefiro navegar em águas calmas a surfar em altas ondas. Quem tem equilíbrio e sabe analisar com frieza, não vai se preocupar nunca.
O empregado que serve aos ricaços, é primo do empresário camelô lá de Madureira. É claro que chega à conclusão de que a tal crise não passa de uma babaquice de um monte de otários espalhados pelo mundo.
Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Na verdade, muita gente séria aconselhada por seus agentes financeiros, viu nas propostas dos bancos bons investimentos cujas bases, entretanto, inexistiam e desabaram quando a verdade apareceu.
Afinal, eram ofertas de negócios de que a metade do mundo aceitou entrar e jamais poderia deixar de levar em conta o passado de seriedade e a segurança de tais instituições. Quando veio a derrocada, fortunas se tornaram pó.
E agora, para onde vai o mundo? As notícias são terríveis para as grandes potências e nem tanto assim para o Brasil, seguindo os analistas e o próprio Presidente Lula.
A nós, humilde maioria da população, nada há a fazer se não deixar o tempo passar e torcer para que nossos empregos se mantenham incólumes ao desespero que nos chega através das notícias da TV.
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