Diz um conhecido escritor e humorista, que “chato é aquele cara que a gente pergunta como vai e ele conta”. Titinho não chegava a tanto, mas as mães e avós do bairro o consideravam um menino bonzinho. Nada melhor que isso para todos saberem que ali estava um chato.
Titinho, cujo nome de batismo era Alberto e ninguém sabia onde e quando surgira o tal apelido, sempre foi o melhor aluno da turma. Do primário ao vestibular sempre ostentando medalhas douradas, distinção dada aos mais aplicados. Passou para a faculdade de engenharia no primeiro lugar, o que lhe rendeu entrevistas nos rádios e jornais da cidade. Respondia a todos com a mesma falsa modéstia: “Sei lá... Acho que foi pura sorte”. Noites de sono perdidas, exercícios exaustivamente repetidos, livros lidos e relidos e, no final, “pura sorte”. Além de “nerd” era um chato.
Falava com o rosto quase colado ao do ouvinte, muitas vezes obrigando a “vítima” a dar um ou dois passos para trás; arrumava o colarinho do uniforme dos colegas enquanto discorria sobre assuntos longos e sem qualquer interesse. Sua comida era escolhida com atenção pela mãe, já que detestava tudo que os outros familiares adoravam e por aí tocava sua vidinha sem sal.
Mas nos tempos de garoto, Titinho também tinha suas frustrações. Adorava futebol, mas só conseguia jogar quando a bola era dele. Fora isso, apenas se algum dos meninos saía mais cedo e, mesmo assim, era imediatamente deslocado para o gol, lugar nacionalmente guardado para aqueles cuja capacidade de jogar são consideradas nulas pelos demais atletas.
Chegava sempre em casa muito suado, jogando ou não, já que torcia contra os dois times, enquanto amargava a reserva.
Vez por outra, o time da rua disputava partidas em campos espalhados pelos bairros próximos. Na estação do Sampaio, naqueles tempos de um Rio de Janeiro menos explorado demograficamente, lá do outro lado da linha férrea, existia uma grande área onde os campos ficavam uns ao lado dos outros. Ali se pagava aluguel para usá-los e a garotada juntava as economias para participar da festa. Titinho sempre estava entre eles, mas via de regra, ocupava a posição de reserva do goleiro.
Aproveitando as férias escolares do meio do ano, havia um torneio entre as equipes de diversos bairros. Coisa chique, com os atletas uniformizados, de meias e chuteiras. Os juízes escalados pertenciam à Federação e, diziam, muitos olheiros de grandes clubes assistiam às partidas procurando identificar novos valores para o futebol carioca.
Havia, também, grande movimentação de familiares, principalmente nos jogos dos fins de semana, orgulhosos pela participação de seus filhos, sobrinhos e netos queridos. Afinal, eram eles quase sempre os financiadores dos uniformes, aluguel dos campos e, até, do lucro que ia para o bolso de alguém.
Aquele mês de julho tinha sido particularmente desagradável. Choveu muito e o frio fora exagerado para os padrões cariocas. Se os moradores da cidade do Rio de Janeiro já se agasalham com temperaturas abaixo dos vinte e poucos graus, imaginem com os termômetros marcando inusuais quatorze, quinze graus. Só faltavam surgir botas para neve e os esquis. E foi sob esse clima que transcorreu o campeonato.
O time da velha rua, se não era o pior também não poderia ser colocado entre as equipes que se destacavam, como às do Campo Grande e a do Serra Negra, sempre disputando entre si os primeiros lugares. As chuva e os campos enlameados, acabaram por nivelar “por baixo” as disputas e, assim, a equipe de Titinho, reserva do goleiro, foi indo. A semifinal contra o Campo Grande terminou com o escore de um a zero surpreendente, colocando a turma da rua para enfrentar o Serra Negra, que encaçapara seis gols no último adversário, na final a ser realizada no domingo seguinte.
Todos sabiam que o Serra Negra era uma equipe organizada por um bicheiro lá dos lados da subida da Serra de Petrópolis e que tinha, até, treinador remunerado. Segundo as más línguas, os jogadores também recebiam uma “ajuda de custo” e, dali, já tinham saído craques para os times da primeira divisão. Para aquele jogo, Bocão, o tal bicheiro, estabeleceu concentração. Alugou um sítio pelas bandas de Xerém e lá ficaram os componentes da equipe, incluindo o próprio Bocão, figura pouco presente nos treinamentos, embora mantendo sempre por perto um de seus homens de confiança.
Finalmente chegou o domingo que, para variar, estava chuvoso e com um vento frio soprando forte, principalmente no descampado formado pelo conjunto de praças esportivas do Sampaio. A torcida do Serra Negra lotou um ônibus, enquanto os familiares do time de Titinho, postavam-se do outro lado do campo, intimidados pelas bandeiras e ferozes gritos de guerra da torcida adversária. Bocão, com o tradicional colar de ouro de um dedo de grossura, charuto na mão e sob o guarda-chuva que um de seus auxiliares segurava e o acompanhava em todos os seus movimentos, evitando que um só pingo caísse na camisa ou nos óculos escuros do chefe, lá estava. Postado à beira do campo, na linha que divide o centro do gramado, falava mais que o próprio técnico.
Para o timinho da rua, já era uma vitória ter chegado às finais do torneio e, agora, era só armar um bom esquema defensivo para perder de pouco.
O jogo começou e se não fosse a lama, que provocava escorregões e quedas ridículas – inclusive do juiz – e o Serra Negra teria imposto uma considerável vantagem no primeiro tempo, que acabou zero-a-zero.
A partida já ia pela metade do segundo tempo, quando o goleiro Batista, que defendera tudo até ali, quebrou o dedo mínimo da mão direita, tendo sido levado imediatamente para o hospital, no carrão cedido pelo bicheiro. Um ar de desânimo tomou conta de todos, quando Titinho entrou em campo, vestido de preto, após um grotesco aquecimento.
Reiniciada a partida e para alívio dos rapazes do time da rua, o Serra Negra arrefeceu um pouco, dando tempo para que respirassem. Mas aos trinta e cinco minutos, ouve-se um grito. A voz grave de Bocão anunciava: “Tá na hora, gente... Todo mundo pra frente!
Ali começava um intenso bombardeio contra o gol de Titinho. Felizmente a pontaria dos atacantes do Serra Negra não estava boa e as bolas que chegavam até ele, eram fracas, amortecidas pelas poças d’água ou atrasadas por seus próprios defensores.
Faltando menos de cinco minutos para o final, o centro-avante dribla dois zagueiros e parte com a bola dominada na direção do gol de Titinho.
- Sai, vai nele!
O rapaz, indeciso, finalmente resolveu sair de encontro ao adversário. Três ou quatro passos e escorrega na lama. Com a impulsão, sentiu seu corpo voando para a frente, enquanto o atacante enchia o pé. A torcida exultou. A bola explodiu no peito do goleiro e voltou para o meio do campo. Titinho, com o peito ardendo, voltou para o gol ouvindo um impropério de Bocão e gritos de “dá-lhe garoto”ou “beleza”dos companheiros. Pouco depois o jogo acabava e o resultado seria decidido na cobrança de pênaltis.
Cinco chutes para cada time. O primeiro a marcar foi o pessoal da rua. O Serra Negra empatou. Novo gol da meninada e outro empate do “Serra”. Aí deu-se o milagre. Após o terceiro gol de seu time, Titinho resolveu ficar imóvel no próximo chute, fazendo, apenas, o popular “golpe de vista”. Até ali sempre se atirara para o lado errado, chafurdando na lama. Que se danassem todos. Estava molhado até na alma e eles que fizessem o que bem entendessem. O tal centro-avante, aquele do chute forte, soltou seu petardo bem no centro do gol, na direção do peito de Titinho, que só ouviu o barulho e, novamente, a ardência do couro batendo na pele. Lá foi a bola, de novo, parar no meio do campo.
A meninada passou a acreditar na possibilidade de uma vitória, embora Titinho efusivamente festejado pelos companheiros, continuasse a repetir: “Foi pura sorte...”
Novo gol da turma da rua. Era uma questão de vida ou morte para o time de Bocão. Se errassem a próxima penalidade, o campeonato estaria perdido. Zunim, o “becão” do Serra Negra, ajeitou a bola e olhou para Titinho como se dissesse: “Quero ver se agarra essa...” Tomou uma grande distância e partiu. O goleiro, naqueles poucos segundos, pensou: “Finjo que vou para a esquerda e me atiro para a direita”. Só não contava que a lama fizesse seu pé falsear e o fingimento tornar-se real, fazendo-o cair para a esquerda. Um salto, diríamos, milimétrico, mas o suficiente para a bola ficar presa entre seu corpo e o chão. Sua equipe ganhara o torneio graças a ele.
Foi carregado em triunfo e recebeu uma medalha a mais, como o “jogador revelação do campeonato”. Lá pelas tantas, um sujeito entregou-lhe um cartão:
- Se quiser fazer testes num time grande, é só me procurar... Você tem futuro, garoto.
Agora Titinho tinha uma história com comprovantes: medalhas, fotografias e troféu. Nunca mais pediu para jogar, embora sempre convidado. Não queria quebrar o encanto daquele momento glorioso que, sabia, jamais iria se repetir.
Assim, sempre que podia, contava a história para o primeiro desavisado que aparecesse, sem esquecer dos mínimos detalhes de tudo o que acontecera, concluindo sempre com a tradicional “modéstia”:
- Sei lá... Acho que tudo foi pura sorte...
Era um chato.
domingo, 19 de outubro de 2008
terça-feira, 7 de outubro de 2008
MEU BRASIL BRASILEIRO...
Existem ocasiões em que por mais dramática seja a situação, uma gargalhada pode amenizar a tensão reinante. Lembro-me de um velho conhecido que estava presente quando do incêndio num grande edifício comercial. No desespero de se verem livres das chamas, as escadas ficaram abarrotadas de gente em pânico. Eis que se ouve um grito:
“Peraí, não empurra porque minha marmita vai entornar...”
Houve breve silêncio, seguido de um murmúrio crescente, que se tornou uma gargalhada geral. A partir daquele momento, o terror diminuiu e em passos coordenados, a multidão começou a descer e todos alcançaram a rua.
Botequins guardam vastíssimo corolário de frases e verdades aleatoriamente ditas. Num deles, havia um quadro pendurado na parede azulejada, onde se lia:
“Aqui, após a terceira dose, todos os problemas do país são resolvidos.”
Um bêbado, desafiando a lei da gravidade e equilibrando o corpo para trás num ângulo de quase quarenta e cinco graus, na porta de um desses “estabelecimentos”, declarava em alto e arrastado som:
- O Brasil tem como exportar eternamente, jogadores de futebol e gente corrupta.
Engraçado? Talvez, mas verdadeiro. Quanto aos quase garotos, agora identificado por “olheiros” do futebol europeu nos campos de várzea interioranos, nada a acrescentar. Cada vez mais vemos e ouvimos falar de figuras e nomes desconhecidos brilhando no Velho Continente, muitos já naturalizados e podendo disputar campeonatos pelas seleções dos países que os adotaram.
E quanto à gente corrupta? Depois de anões, mensalões, sanguessugas e quantas outras denominações dadas aos escândalos políticos dos últimos tempos, podemos encarar de forma mais séria a afirmação do bebum.
Um velho político afirmou em conversa informal da qual meus ouvidos participavam, estar a corrupção de tal forma enredada no poder público, que se puxarmos um fio da “teia”, digamos, numa estatal, poderemos fazer “desabar” um Ministério lá do outro lado da praça dos ditos cujos em Brasília, que nada teria a ver com a função da tal estatal.
Somos um país que tem a corrupção em seus alicerces. Se o Bispo Sardinha, aquele literalmente comido pelos índios, acumulou fortuna cobrando dobrões de ouro para absolver os pecados dos que podiam, pagar, ainda nos primórdios do nosso Brasil varonil, o que não imaginar dos que administram fortunas em investimentos governamentais? Esse é um assunto que poderia encher páginas, nada mais surpreendendo ao sonolento leitor, infelizmente já acostumado com isso.
Difícil acabar com a corrupção? Muito, já que se não for um movimento de grande parte da sociedade, haverá sempre a possibilidade da ação coerciva de autoridades desonestas, pulverizando os que levantaram suas vozes. Exemplo? Lá vai:
- Um empresário forçou o flagrante do pagamento de propina a determinado fiscal. Jornais e TVs mostraram a notícia. Passado menos de um mês, TODOS os órgãos fiscalizadores municipais, estaduais e federais, se abateram sobre o honesto e otário empresário que até hoje, briga na Justiça contestando a chuva de multas arbitrárias daquela época.
E lá vamos nós elegendo novos mandatários sem saber se, um dia, alguém com uma piada igual a do rapaz descendo do prédio em chamas, provoque uma reorganização social espontânea que acabe com esse tenso e vergonhoso estado de coisas.
“Peraí, não empurra porque minha marmita vai entornar...”
Houve breve silêncio, seguido de um murmúrio crescente, que se tornou uma gargalhada geral. A partir daquele momento, o terror diminuiu e em passos coordenados, a multidão começou a descer e todos alcançaram a rua.
Botequins guardam vastíssimo corolário de frases e verdades aleatoriamente ditas. Num deles, havia um quadro pendurado na parede azulejada, onde se lia:
“Aqui, após a terceira dose, todos os problemas do país são resolvidos.”
Um bêbado, desafiando a lei da gravidade e equilibrando o corpo para trás num ângulo de quase quarenta e cinco graus, na porta de um desses “estabelecimentos”, declarava em alto e arrastado som:
- O Brasil tem como exportar eternamente, jogadores de futebol e gente corrupta.
Engraçado? Talvez, mas verdadeiro. Quanto aos quase garotos, agora identificado por “olheiros” do futebol europeu nos campos de várzea interioranos, nada a acrescentar. Cada vez mais vemos e ouvimos falar de figuras e nomes desconhecidos brilhando no Velho Continente, muitos já naturalizados e podendo disputar campeonatos pelas seleções dos países que os adotaram.
E quanto à gente corrupta? Depois de anões, mensalões, sanguessugas e quantas outras denominações dadas aos escândalos políticos dos últimos tempos, podemos encarar de forma mais séria a afirmação do bebum.
Um velho político afirmou em conversa informal da qual meus ouvidos participavam, estar a corrupção de tal forma enredada no poder público, que se puxarmos um fio da “teia”, digamos, numa estatal, poderemos fazer “desabar” um Ministério lá do outro lado da praça dos ditos cujos em Brasília, que nada teria a ver com a função da tal estatal.
Somos um país que tem a corrupção em seus alicerces. Se o Bispo Sardinha, aquele literalmente comido pelos índios, acumulou fortuna cobrando dobrões de ouro para absolver os pecados dos que podiam, pagar, ainda nos primórdios do nosso Brasil varonil, o que não imaginar dos que administram fortunas em investimentos governamentais? Esse é um assunto que poderia encher páginas, nada mais surpreendendo ao sonolento leitor, infelizmente já acostumado com isso.
Difícil acabar com a corrupção? Muito, já que se não for um movimento de grande parte da sociedade, haverá sempre a possibilidade da ação coerciva de autoridades desonestas, pulverizando os que levantaram suas vozes. Exemplo? Lá vai:
- Um empresário forçou o flagrante do pagamento de propina a determinado fiscal. Jornais e TVs mostraram a notícia. Passado menos de um mês, TODOS os órgãos fiscalizadores municipais, estaduais e federais, se abateram sobre o honesto e otário empresário que até hoje, briga na Justiça contestando a chuva de multas arbitrárias daquela época.
E lá vamos nós elegendo novos mandatários sem saber se, um dia, alguém com uma piada igual a do rapaz descendo do prédio em chamas, provoque uma reorganização social espontânea que acabe com esse tenso e vergonhoso estado de coisas.
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