domingo, 31 de agosto de 2008

CAMINHADA

E lá se vai outro dia, com poucas modificações nos acontecimentos do ontem. A tarde começa a ensaiar a viagem do sol, pintando perto do horizonte as nuvens cinzas com um vermelho vivo.

Ignoro o vento frio vindo do mar e continuo minha caminhada em direção à coisa nenhuma, que deve ficar ali por volta do princípio do Leme. Esse negócio de andar como exercício, se não fizer bem ao corpo o faz para a mente. Esqueço os problemas e se me perguntarem o que penso enquanto ando, certamente não saberei responder.

Vai daí que entre um atlético corredor e uma velhinha dentro da malha vermelha contrastando com seus cabelos – e tênis – brancos, vou chegando ao final da caminhada. Cansado? Nem tanto. Um pouco frustrado, talvez, pela juventude que se foi, mas é lembrada a todo instante pelos que passam – ou ficam – pelo caminho.

Atravesso a rua e volto para casa, onde a vida retornará ao seu rumo, até que nova caminhada se inicie.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

NADA A DECLARAR

Em parceria com Vanessa Peiró Correia
(vancorreia.blogspot.com)






Nada a Declarar.
Reticências, pontos parágrafos ou não, nuvens pesadas que irão desabar sei-lá-aonde, trazendo risos ou choros aos mais necessitados.

Nada a declarar.
Crianças descalças, lavando os pés na água da sarjeta, enquanto mendigos exclamam frases sábias que os livrem de banhos desgastantes.

Nada a Declarar.
Businas acordam os de andares mais baixos e avisam se iniciar um dia de trabalho ou o marasmo para uma população neurótica, caótica, apostólica, mas que acredita em espíritos, cujos divans dos psicanalistas encheria caso houvesse dinheiro para isso.

Nada a Declarar.
Nossos atletas voltando do Cubo D’Água, com poucas medalhas, mas com muita vontade de cometer grandes pecados intitulados de carboidratos, gorduras saturadas e afins.

Nada a Declarar
Serginho Malandro, candidato a vereador, assim como Havanir, dermatologista e mestra em Photoshop, exibindo seu rosto impecável em website produzido para sua eleição, da mesma forma que os sanguessugas processados, mas liberados pelo Supremo para continuarem a perpetuar a desonestidade em nome de um povo maltrapilho e ignorante.

Nada a Declarar.
Balas perdidas que encontram cabeças, peitos; risos bêbados que encharcam as madrugadas com a tolerância zero da lei que não se sabe se vai pegar... Pega o ladrão, o ônibus, a vizinha bonita, o caixote na feira... Pega o bonde da vida e toca em frente.

Nada a Declarar...
Dercy Gonçalves chegando ao céu, perdida sem seus palavrões e decepcionando anjos e querubins, ávidos pela libertinagem e devassidão que só conhecem das lendas..

Nádegas a Declarar..
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terça-feira, 19 de agosto de 2008

O BRUXO

A casa ficava vinte e cinco degraus acima do nível da rua. Era modesta, com cinco cômodos que abrigavam os pais, a irmã e ele. Tinha um grande terreno à sua volta e as árvores no fundo do quintal deveriam ser convite a estripulias só não levadas em frente, pela falta de companhia.

Otaviano era um menino só. A mãe não permitia que descesse para brincar com as crianças na rua e nenhum moleque se aventurava a subir a escadaria. Supria a falta de amigos com sua imaginação fértil. Fazia bonecos de papel retorcido, que podiam ser “cowboys” ou bandidos nas aventuras engendradas; as armas utilizadas pelos personagens, eram pequenos pedaços de arame que faziam as vezes de revólveres, espingardas ou espadas, de acordo com as exigências da história.

Otaviano cresceu e durante a vida escolar, sempre foi um aluno mediano e quando aprovado no vestibular para uma faculdade pública de medicina, surpreendeu a todos. O pai fazia o impossível, mas os livros e materiais caríssimos exigidos pelo curso, obrigaram o rapaz a dar aulas de matemática, física e química para alunos do curso médio em dificuldades com aquelas matérias, ajudando nas despesas trazidas pela faculdade. O sucesso foi tanto, que passou a substituir um amigo, professor de pré-vestibular, quando este precisava faltar.

Conseguiu a residência médica graças a um colega, filho de político famoso, que sugeriu seu nome para a vaga recebida de presente, face ao desinteresse em “viajar” até aquele hospital suburbano. Depois de muitas suturas, partos e colocação de ossos em seus devidos lugares, viu-se médico. Alugou um sobrado próximo de casa e começou atendendo os clientes que pouco a pouco surgiam, além dos chamados noturnos onde as famílias com certa habitualidade, não tinham sequer como pagá-lo e ele ainda as ajudava dando amostras grátis dos remédios receitados, recebidas dos representantes de laboratórios que o visitavam.

Seu jeito carinhoso e brincalhão, cativava mais clientes e chegou o momento em que assumiu as despesas da casa, aliviando o orçamento dos “velhos” e até conseguiu comprar um carro de segunda mão. Tinha uma vida razoavelmente tranqüila, onde as moças surgiam e desapareciam para alívio do pai e preocupação da mãe, interessadíssima em vê-lo dando-lhe um neto, já que a irmã casara e viajara para o fim do mundo, em companhia do marido, engenheiro de barragens.

Certa manhã, enquanto tomava seu café, a velha empregada que o conhecia desde menino, quando ainda trabalhava para outra família vizinha, o interpelou:
- Tavinho, é verdade que você é espírita?

O rapaz surpreendeu-se e rapidamente passou por sua mente a divertida história ocorrida no passado, quando convencido por um colega foi visitar uma Casa Espírita. Lá para as tantas, a mulher sentada ao seu lado “manifestou um espírito” e deu sonora gargalhada. O susto foi tamanho que quase foi parar no colo do amigo.
- Quem... Eu?

- Estão dizendo por aí que você já sabe até qual a doença do paciente, mesmo antes dele sentar na sua frente; que distribui remédios de graça... Eu, heim, se continuar assim nunca vai ficar rico...

A última frase já foi dita como se pensasse alto, enquanto Otaviano rumava em direção ao sobrado ainda comendo um biscoito. No caminho, surgiu-lhe a idéia. Iria testá-la, só por divertimento, nos seus clientes daquele dia e aguardar se haveria alguma reação.

Quando o primeiro consulente entrou na sua sala, encontrou-o com os olhos fechados e as mãos apoiando a testa. Com um gesto quase teatral, mandou que a “vítima” sentasse, abaixou os braços cruzando as mãos e olhando fixamente para o desconfiado cliente. Com voz pausada e tranqüila, descreveu todo o quadro clínico, os remédios tomados e até os efeitos colaterais eventualmente atribuídos aos mesmos. Evidente que tudo constava da ficha médica e fora minuciosamente examinado antes da entrada do pobre coitado. E assim procedeu durante o resto do dia. Com aqueles que o visitavam pela primeira vez, deixava que contassem o motivo da ida até ali e caso fosse comentado alguma coisa sobre os remédios eventualmente receitados por outro médico, lá vinha a mesma cantilena dos efeitos colaterais que poderiam estar sentindo. Segundo seus cálculos, o índice de acerto chegou próximo aos oitenta e cinco por cento e, por isso, resolveu continuar com a brincadeira.

Teve de contratar mais uma recepcionista e em pouco tempo comprava novo conjunto de salas em bairro mais condizente com o padrão dos novos clientes que começaram a procurá-lo em grande número. Deixou de ser apenas o médico para se tornar um orientador, guru e até bruxo, já que continuava a medicar os que necessitavam de seus trabalhos. Aprendeu a ouvir mais e manter silêncio em momentos onde era esperado seu pronunciamento. Frases de efeito como: “ Dê tempo ao tempo e tudo ficará mais fácil de se resolver...” eram usadas e absorvidas pelos que o cercavam, como se fossem gotas de sabedoria.

Cada vez era mais procurado, porém não se sentia feliz. Passara a ser vítima da própria armadilha, porém ganhava muito dinheiro com isso. Seu novo apartamento de frente para o mar e decorado por nomes famosos, servia de abrigo para noites mal dormidas onde procurava uma solução que acabasse com aquela depressão. E ela não se fez esperar. Certa tarde recebeu a visita de um representante da Justiça, que lhe trazia a intimação onde havia denúncia de “exercício ilegal da medicina”. Compareceu à Delegacia Policial acompanhado por dois famosos advogados e ali provou ser médico registrado e apto a dar consultas e prescrever medicações.

Os jornais noticiaram o fato, o Conselho Regional de Medicina fez uma sessão em desagravo ao médico injuriosamente constrangido e... Os clientes desapareceram. Acabara o encanto. Afinal ser consultado por um médico qualquer um podia, mas a graça era em ter um bruxo como conselheiro e cujas receitas fossem consideradas “beberagens” por aquela pequena multidão de novos ricos...

Tinha se resolvido o problema que o acompanhava. É claro que as dadivosas fontes de renda secaram, mas o que ganhara permitia tocar a vida sem maiores preocupações. Foi assim que semanas mais tarde, vendia as suntuosas instalações do consultório e reabria o velho sobrado suburbano, onde, feliz, brincalhão e sem quaisquer “disfarces”, observou os antigos clientes voltando.

Se concluíra um ciclo de vida, não podia afirmar, mas não tinha mais qualquer sonho de grandeza que o levasse além daquilo para o qual se preparara por tantos anos. Ser Médico.