terça-feira, 18 de novembro de 2008

FAZ MUITO TEMPO

Faz muito tempo.
Lembranças inexplicáveis retornam, sem razão alguma que as motivasse. Simplesmente surgem. Mostravam-no ainda um menino e os que estavam à sua volta, somente imagens embaçadas. Só aquela figura se fazia clara e bem definida. Severa, mas dona de uma suavidade única para conversar com as crianças para as quais dava aulas na velha escola suburbana.
Era quieto, terrivelmente disciplinado, mesmo para os tempos em que a educação que lhe era imposta ainda guardava resquícios do século XIX. Temeroso e submisso granjeava a simpatia dos que com ele conviviam até aquele dia, onde alguma coisa mudou e o fez mais respeitado entre os companheiros de turma.
A própria professora, que lhe volta à mente, passou a ter um outro olhar para o garoto que, momentos antes, era o exemplo sempre citado, não só pelas notas acima da média, mas também pela quietude e mansidão.
Foi uma explosão momentânea, onde a personalidade contida pelas imposições familiares, veio à tona surpreendendo todo mundo. Ali aprendeu o significado do velho ditado: ”Não cutuque onça com vara curta”. Afinal, não podia admitir que fosse interpretado como um covardão sem personalidade sujeitando-se a qualquer coisa que lhe impusessem. Ninguém ainda sabia, mas uma atitude dessas contra ele era um terrível equívoco. Após uma discussão sem a menor importância, um atordoante tapa no rosto e a reação imediata. Não sabia lutar, mas aprendeu ali; nunca brigara com alguém, mas a fúria da reação parecia desmenti-lo. Com um soco cuja potência até ele mesmo duvidava, jogou o oponente por terra e bateu, chutou, cuspiu, até que um adulto, não se lembra quem, conseguisse retira-lo de sobre o corpo do outro menino, em tese maior e mais forte que ele, nessas alturas assustado e com vistosas escoriações e hematomas que começavam a se formar.
Levados à presença da Diretora, a “vítima” assumiu sua culpa, até porque diversos alunos amontoavam-se na porta do Gabinete, prontos a darem seus testemunhos contra ele. O jovem oponente era conhecido por atos de valentia e delinqüências extemporâneas. Sua derrota fazia desabar o mito construído graças às violências contra outros colegas.
Após ouvir as severas reprimendas da velha senhora, o novo herói da garotada voltou à sala de aula, já que o tempo de recreio se extinguira há muito. Recebido por um silêncio tumular e o sorriso de conivência e admiração de alguns, encaminhou-se até a professora com o intuito de se desculpar, porém ela não deixou que falasse e dirigiu-se à turma de forma eloqüente.
Sem incentivar diretamente seus atos de minutos antes, chamou a atenção da turma para que se sentissem fortes nos momentos da vida onde isso era exigido; da rigidez de atitudes que demonstrassem personalidade e segurança. Enfim, sem aplaudir diretamente a reação do aluno, fez dela o exemplo para entenderem a necessidade de imporem suas razões e motivos nos momentos oportunos.
Passou-se algum tempo e chegou ao conhecimento dos pais dos meninos que a professora, dias após esses acontecimentos, desquitara-se. Teria de enfrentar uma sociedade preconceituosa a respeito de mulheres separadas, mas o fez. Só muito tempo depois, soube-se que dissera ter aprendido com um aluno o momento em que o amor próprio não poderia ser esquecido.
Uma criança dando exemplos de vida ao adulto. Pensando bem, quantas não foram as vezes em que em nossas vidas fatos semelhantes não nos levaram a tomar decisões através de soluções trazidas por elas?
A vida corre, a recordação torna e, de uma forma ou outra, fica a história que traz uma mensagem efetiva. Bem vinda, portanto, a volta de tais imagens dos velhos tempos da escola primária.